O indivíduo face ao colectivo e o teatro face à História

Em Avignon há espectáculos que impõem uma leitura e outros que se deixam contaminar pelo contexto social e económico no qual vivemos. Quatro deles permitem-se a uma viagem cronológica pela evolução do liberalismo ao longo do último século

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"The Fountainhead" Jan Versweyveld
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"Solitaritate" Christophe Raynaud de Lage
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"La imaginación del futuro" BERTRAND LANGLOIS/afp
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"O Casamento de Maria Braun" Arno Declair

Os festivais não têm por hábito defender grandes linhas temáticas sob pena de que uma leitura mais evidente possa diminuir o potencial de atractibilidade dos espectáculos. A aposta é na inclusão de pontos de vista e não na exclusão de espectadores. Mas, por vezes, há leituras que ultrapassam o acto de programar e inscrevem na identidade de uma programação aspectos que sublinham a ideia de que um festival, por mais que a intenção seja dar a ver, também pode colocar em evidência questões que ultrapassam as intenções directas de quem programa e até de quem assina os espectáculos.

Em Avignon, este ano, são quatro os exemplos que se organizaram de forma arbitrária e se constituíram (ou podem constituir) como pontos de partida para uma reflexão sobre o lugar que o teatro pode ocupar no debate sobre os conflitos económicos e ideológicos. Talvez seja uma leitura fomentada pelos tempos onde não se fala de teatro sem se falar de economia, sobretudo num festival que é, também, um mercado mas que gosta de se apresentar como espaço onde a criação não tem preço. Mas, mesmo que assim seja, há pistas na programação que nos permitem admitir que serão cada vez mais presentes os debates ideológicos sobre modelos económicos. E, no meio disso, o teatro a tentar responder ao avanço do liberalismo na dramaturgia e nas encenações contemporâneas.

Um exercício que não será completamente abusivo permite alinhar quatro peças que, vistas de um prisma cronológico, potenciam olhares para quatro realidades distintas e quatro abordagem historicamente complexas. Assim, à cabeça, The Fountainhead, encenação do holandês Ivo van Hove do romance da norte-americana Ayn Rand, já adaptado ao cinema por King Vidor (Vontade Indómita, 1949) em que, na década de 1920, numa Nova Iorque prestes a ver estilhaçada a ideia de uma nova sociedade, se opõem duas visões distintas sobre a arquitectura como lugar de liberdade, disfarçadas de uma reflexão aguda (escrita em 1943, com quase 15 anos de distância) sobre o lugar do indivíduo face ao colectivo. E, sobretudo, o lugar do artista nessa sociedade. Ayn Rand, escritora de origem russa que com The Fountainhead e Atlas Shrugged (1957) se tornou num ícone da direita americana, aproveitada tanto pelos ultraliberais como pelo conservadorismo negligente de Ronald Reagan, desenha um intrincado novelo entre sexo, dinheiro e poder para falar de uma sociedade em mudança.

Estavamos em plena II Guerra Mundial e o debate sobre se a arquitectura era ou não arte, logo se se devia reger por princípios teóricos ou ver aplicadas lógicas de organização social, é naturalmente um debate de cariz ideológico que ecoa nos dias de hoje. Sobretudo porque o romance coloca o leitor-espectador perante a necessidade de justificar os efeitos das suas acções, sob a égide de uma eficácia sem rosto.

A luta dos “criadores” contra os “parasitas” é o mote para que Ivo van Hove se concentre numa reflexão – como sempre fria, clínica, higienicamente asséptica -  acerca dos limites da liberdade e o preço desses limites. O encenador nunca chega a, realmente, posicionar-se perante as questões levantadas por Ayn Rand, preferindo centrar a sua abordagem na figura de Dominique (magnífica Halina Reijn), mulher que se deixa envolver pelos dois rivais e, mais tarde, pelo milionário que os destruiu. É uma leitura passional e, como sempre no teatro de Ivo van Hove, altamente funcional, escondendo-se no efeito e desviando-se do comprometimento através de efeitos de vídeo num cenário que se abre aos bastidores e que usa a ideia de maquete para nela mergulhar os actores, os músicos e os técnicos.

As quatro horas de espectáculo justificam-se mal perante os 20 minutos finais onde Howard Roark tem o seu discurso sobre a liberdade de escolha e a obrigação de pensar nas consequências dessas mesmas escolhas. Para alguém que vem de um país, a Holanda, onde os apoios à cultura foram amplamente reduzidos, é, no mínimo, curioso, que Ivo van Hove se proteja de uma posição perante uma escolha nada ambígua como é o romance de Ayn Rand.

Da América dos anos 1940 passamos para a Alemanha do pós-guerra com a adaptação que Thomas Ostermeier fez do guião de Rainer Werner Fassbinder para o filme O Casamento de Maria Braun (1979). “A Mata-Hari do milagre económico”, vista pelos olhos de um filho do fim do comunismo e da queda do muro, herdeiro dilecto de um teatro de reacção, que nos últimos anos tem optado uma abordagem menos colérica (por exemplo, John Gabriel Borkman, que vimos no Centro Cultural de Belém em 2009; Um Inimigo do Povo, Morte em Veneza) e, por isso, mais íntima.

A opção de fazer representar todos os papéis, com excepção de Maria Braun, por homens, permite sublinhar o isolamento desta mulher de vida madrasta, começada em 1943 (o mesmo ano da publicação de The Fountainhead) numa Alemanha em ruínas que se sustenta no Mundial de futebol do qual se sagrou  campeã em 1954 contra a Hungria. Porque então era a Alemanha Ocidental a jogar contra a Hungria, não é difícil de admitir que o facto de Ostermeier colocar as personagens a ouvir o relato do jogo enquanto a casa explode é uma metáfora para a vitória do capitalismo contra a utopia socialista.

Por isso, e porque passa por toda a encenação uma amargura que seria impossível há uns anos, quando o sentimento de nostalgia pelo passado parecia tomar conta de todo o discurso alemão exportável, o destaque dado à protagonista faz-se através de um desapego pelo próprio corpo. É  um tour de force de uma actriz (Ursina Lardi) sozinha num palco alcatifado que tenta disfarçar a sua condição de “Trümmerfrauen” - as mulheres dos escombros -, como eram apelidadas as mulheres chamadas a reconstruir as cidades, e na reconstrução da sociedade a terem que se reconstruir a si mesmas, sozinhas por já não terem os maridos, mortos ou presos.

É um retrato comovente no qual Ostermeier reforça a dimensão anti-heróica desta personagem, do mesmo modo como já havia feito com as personagens de Ibsen, Nora e Júlia, corpos solitários no fim do século XIX. É também um modo de falar de individualismo e do preço desse individualismo, opondo o desejo de fuga à amoralidade económica.

Imaginar o futuro

O modo como as abordagens dramatúrgicas ao passado podem fazer ecoar questões do presente é também uma questão fulcral em La imaginación del futuro, criação chilena da companhia La Re-Sentida, com encenação de Marco Layera, que revisita o golpe de estado que depôs Salvador Allende em 1973 e experimenta, com ampla liberdade histórica, cruzar o mundo da política profissional, feita de spin doctors, atenção ao mediatismo e pensada enquanto arma de estratégia de impacto internacional, com a utopia comunista da altura.

O que se vai passar no Chile de 1970 explicará, em grande medida, a oposição entre a utopia política e o pragmatismo social que alimenta o debate contemporâneo. E aquilo que está na base do espectáculo é uma profunda e amarga consciência de que a utopia não começou a falhar na deposição de Allende mas na impossibilidade de a recuperar, uma vez finda a ditadura.

É um espectáculo duríssimo de ver, que foi acusado por grande parte da imprensa francesa de promover um revisionismo gratuito e grotesto ao mostra Allende como uma marioneta incapaz. O que fica para lá da nostalgia sobre uma utopia nunca concretizada é a consciência grave de que hoje, provavelmente, homens como Salvador Allende não sobreviveriam à máquina brutal na qual se tornou a política. Se o espectáculo abre com uma feerie a que já nos habituou o teatro chileno, depressa , e com mestria se dá lugar a uma crueldade sádica, perfidamente gelada, misturando o espectáculo da política com a política de espectáculo, através de uma maquinação dramatúrgica que aproveita a realidade dos reality shows para denunciar a ausência de valores morais.

Allende é humilhado por um grupo de ministros corruptos. O público deixa de rir quando percebe que a metáfora deixou de ser uma graça e passou a ser uma analogia para os tempos modernos. Os actores libertam-se de pudores (e de roupa) e entregam-se a uma análise pessoalíssima sobre as razões da crise. O que é profundamente perturbador – e por isso mesmo comovente – é a necessidade de dar a ver que esta pode bem ser a visão que as gerações que nasceram já depois da ditadura e sobre ela não têm qualquer memória, podem ser, realmente, ideologicamente dormentes, socialmente irresponsáveis, historicamente ignorantes. A tudo isto o grupo de actores da La Re-sentida responde com gravidade e consciência num acto de comprometimento raro com uma ideia de teatro como lugar de responsabilidade para com o sentido histórico e a importância das palavras enquanto acção.

Por fim, Solitaritate, da romena Gianina Carbunariu, que apresenta cinco episódios aparentemente banais, decalcados do quotidiano actual de Bucareste e que, através deles, procura denunciar que a ausência de valores e de causas não se concentra apenas nos gabinetes públicos mas, em plena escala, em todas as casas e em todas as decisões individuais. O que separa o Chile de 1973 da Roménia de 2014 não está tanto no número de milhas aéreas mas na mesma amargura com que a sociedade escolhe não se olhar de frente. Os níveis de corrupção e de branqueamento da própria realidade postos em evidência através da banalidade diária que permite a exploração profissional de emigrantes ilegais, que justifica a construção de muros que separam comunidades, que permite a alienação de património pessoal e cultural, que já não acredita que seja possível refundar a própria identidade do país por nela estarem contidas as consequências de décadas de abusos que estrangularam o futuro das gerações ainda porvir.

Nem sempre o texto é feliz na articulação de todas as suas ideias mas, em grande medida, a raiva que alimenta os actores – feita da mesma massa que sustenta a companhia chilena – serve de caução para um espectáculo que recusa participar na perpetuação de estereótipos, mesmo que se use deles para os denunciar. Destaque supremo para Ofelia Popii, actriz de imensos recursos que, na interpretação que faz de uma ama filipina, explorada por uma família de classe média-alta, que enriqueceu sem explicar como nem porquê, se recusa, enquanto actriz, a pactuar com a ausência de comprometimento do próprio texto. E assim, num jogo de rima interna entre a falência do teatro como espelho que permite a denúncia mas alivia a culpa, e a falência moral da própria sociedade, a sua saída de cena, tropeçando na imensa bandeira nacional que faz de cenário, é a metáfora perfeita para um país preso em si mesmo.

Quatro exemplos, portanto, de um teatro que pergunta se a sociedade se quer realmente ver ao espelho ou se o teatro se deve apresentar, ainda que retoricamente, como garante de uma realidade comprometida apenas com a utopia. Quatro exemplos que, de modos diferentes, dão alguma esperança à possibilidade de uma comunidade resiliente e atenta. Não é pouco nos dias que correm.

Crítico de teatro e dança

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