O império coube numa mala

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Retornos, exílios e alguns que ficaram resulta de um trabalho intensivo de recolha de depoimentos — cada inicial corresponde a uma pessoa, e a uma história de vida africana BÁRBARA RAQUEL MOREIRA

Retornos, exílios e alguns que ficaram, que o Teatro do Vestido hoje estreia em Viseu, é só o princípio de uma conversa que mais cedo ou mais tarde teríamos de ter sobre os anos em que Portugal voltou a ser um país pequeno

Hoje o Sr. E. trouxe estatuetas. Já tinha aparecido há uns dias com uns quadros debaixo do braço, daqueles em que o império colonial português é assim muito naïf, género paraíso na terra (“o clima também ajudava”…). Tem mais quadros em casa, podia tirá-los das paredes da sala por umas semanas, só até ao fim da peça, mas se calhar estes chegam. Como chegam os gira-discos onde hão-de girar singles dos Bee Gees, as fotografias a preto-e-branco dos tempos em que íamos para Angola rapidamente e em força, e as máquinas de escrever onde K., o jornalista polaco que assistiu à morte de Luanda da janela do Hotel Tivoli, há-de noticiar o definhar de tudo menos dos cães, “alimentados a latas de combate da NATO”.

Anda por ali, o Sr. E. (“Mas se calhar estou a ser muito chato...”), a ver onde vão ficar as estatuetas, os quadros, os gira-discos e as máquinas de escrever que ele e outros como ele trouxeram de África, decerto rapidamente e em força, e que mais de 30 anos depois ainda lhes mobilam a sala, ainda lhes mobilam a vida. Hoje, amanhã e depois, no Solar do Vinho do Dão, também mobilam Retornos, exílios e alguns que ficaram, o espectáculo que o Teatro do Vestido decidiu fazer por causa do inferno mais ou menos subliminar de uma frase ouvida na rua há quase um ano, quando a companhia ali foi fazer uma edição da peça Esta é a minha cidade e eu quero viver nela (“Viseu é uma cidade de retornados”), e de um saco de mão das Linhas Aéreas de Angola descoberto por acaso num armazém — um saco “igualzinho” ao que um assistente contratado em Viseu para essa peça trouxe, como se traz um império, quando veio do Lobito.

“Um dia entrei numa loja da Rua Direita e percebi que o dono também tinha vindo de Moçambique. Parecia que estas histórias vinham ter connosco. Antes mesmo do final do Esta é a minha cidade... eu já tinha decidido que tínhamos de voltar a Viseu para falar disto e a direcção do Teatro Viriato concordou que tínhamos a sensibilidade necessária”, explica Joana Craveiro ao Ípsilon enquanto almoça num restaurante onde mais histórias vieram ter com ela, já depois de concluídas as 25 entrevistas que são a carne ainda viva de que se alimenta Retornos, exílios e alguns que ficaram. Também teve uma vida em Angola, a família que abriu este restaurante em Viseu, e afinal não chega tudo o que já está amontoado nas grandes salas do Solar do Vinho do Dão, marcado com as iniciais de quem quis contar. Mesmo numa cidade pequena há sempre mais uma, duas, dez vidas “de lá”. Isto que se estreia hoje num edifício que entre 1975 e 1991 funcionou como residência temporária para os que vinham das ex-colónias sem nada e ficavam a cargo do Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais (IARN) não é ainda, portanto, a conversa que mais cedo ou mais tarde teríamos de ter sobre o assunto. É só uma maneira de a começar.

Todas as vozes

Passaram 38 anos, diz Joana Craveiro logo numa das primeiras cenas de Retornos, exílios e alguns que ficaram, e continua a ser uma conversa difícil, em que os souvenirs felizes dos dias “de lá” (do peixe abundante, da lagosta a 30 escudos o quilo, das mulheres que fumavam “ao contrário, para dentro, para durar mais”) se cruzam com os ressentimentos acumulados à partida e à chegada e saem de lá bastante maltratados. Passaram 38 anos e, “como ferida aberta que é”, a questão dos “retornados” ainda está longe de poder ser dita com as palavras todas (mesmo essa palavra, “retornados”...), razão por que nunca saberemos o nome completo do Sr. E., que hoje trouxe estatuetas, nem o nome completo do Sr. J., que em 1955 recebeu uma carta de chamada e para lá foi “miúdo, de olhos fechados”, nem o nome completo do Sr. V., que conduziu uma caravana de 600 famílias até à África do Sul e as deixou sãs e salvas num campo de refugiados pouco antes de dar por si aqui, “exactamente aqui”, e de lhe entregarem um cobertor verde como os que cada espectador receberá hoje, amanhã e depois.

Quando V. chegou a Viseu, moravam no Solar do Vinho do Dão “para cima de 300 pessoas”. Já nada está como nesses anos da descolonização a não ser o frio, “que era exactamente como agora”. Das mais de 25 pessoas que o Teatro do Vestido entrevistou para chegar ao texto final de Retornos, exílios e alguns que ficaram, poucas passaram por este alojamento do IARN à chegada das ex-colónias, mas a companhia teve a sorte de conhecer duas irmãs, N. e N., que por ali ficaram até 1998 — ainda viram o pai plantar uma ameixoeira no jardim, e a ameixoeira a crescer. Há uma cena para elas na peça; na verdade, há uma cena para cada um dos entrevistados — à excepção da palestra inicial, em que se estabelece o contexto da colonização e da descolonização, e da festa final, em que talvez actores e espectadores possam trocar umas ideias acerca deste assunto, nada do que se diz aqui pertence verdadeiramente ao Teatro do Vestido, a não ser no sentido em que lhe foi cedido sem contrapartidas por pessoas que nalguns casos nunca tinham falado, pelo menos publicamente. É delas a história que a companhia quis contar “sem juízos de valor”, sublinha Joana Craveiro, que foi prosseguindo o seu doutoramento em Estudos da Performance sobre transmissão da memória política em Portugal durante a ditadura, o 25 de Abril e o PREC enquanto escrevia o texto: “Era preciso dar conta deste que foi um dos processos mais traumáticos da nossa história recente: isto aconteceu-nos enquanto país, e agora? Claro que é um tema muito complicado do ponto de vista ideológico e que nós também não somos politicamente neutros, mas o que aqui quisemos fazer foi dar voz. E percebemos que as pessoas adoram contar. Precisam de contar. Tanto que muitas chegavam à entrevista a dizer que tinham pouco tempo, não mais do que 15 minutos, e depois ficavam horas a falar. Como se não pudessem parar.”

Falaram sobretudo, completa André Amálio — que, tal como Joana, está a fazer o doutoramento em Londres, mas no seu caso justamente sobre o fenómeno dos retornados —, sobre como “lá”, a “milhares de quilómetros” do condicionamento salazarista, tudo era mais maravilhoso e mais verdadeiro (até “o céu estava mais perto”). E também quiseram “rebater a ideia com que foram recebidos cá de que toda a gente tinha fazendas, toda a gente estava com o regime, toda a gente explorava os negros”. “É muito recorrente essa mágoa de terem sido colocados na mesma caixa quando regressaram, e de terem sido julgados antes de terem sido ouvidos. Os retornados são pessoas muito diferentes política, cultural e economicamente: era toda a sociedade portuguesa que estava nas colónias”, continua o actor. Tal como é recorrente “a necessidade de legitimação”, embora talvez tudo isto devesse estar no plural, porque entre a chegada a África e a vinda para Portugal as versões dos acontecimentos raramente coincidem — a não ser na rejeição, praticamente unânime, do modo como se fez a descolonização —, sobretudo quando estão em cima da mesa acontecimentos fracturantes como a Guerra Colonial, o 25 de Abril e as próprias independências africanas. “Não sendo um espectáculo sobre a Guerra Colonial, era impossível que ela não estivesse aqui: como ignorar 13 anos de conflito armado? Igualmente para o 25 de Abril, que para muitas destas pessoas é o fim da vida como a conheciam”, lembra Joana Craveiro. Foi das cenas mais difíceis de fazer: à mesa, quatro actores (Joana e André, mais Rosinda Costa e Isabelle Coelho), um rádio e dezenas de cartões com as iniciais dos entrevistados, cartões que se sucedem como que a dizer-nos que sobre isto todos terão direito a falar. “Não nos interessava reproduzir o sectarismo que é típico da vida política portuguesa. Para nós todas estas vozes são legítimas: por muito que discordemos delas, e que tenhamos imensas reservas sobre o discurso, construído pelo Estado Novo, de que o colonialismo português era ‘especial’, não temos o direito de as ‘corrigir’. Nesse sentido, este também é um trabalho de humildade: o respeito por estas pessoas implica dar-lhes voz sem colocarmos a nossa ideologia entre o que ouvimos e o que damos a ouvir”, resume Joana Craveiro, acrescentando esperar que Retornos, exílios e alguns que ficaram “não seja um trabalho integralmente nostálgico, nem de vitimização de ninguém”.

Mas talvez não nos seja para já possível, como nação tão tardiamente pós-colonial, sair sem arranhões e uma certa vontade de chorar baba e ranho dos mapas em que “Portugal não é um país pequeno”, dos discos do Duo Ouro Negro, dos anos (de guerra) em que “fizemos tudo o que era mau”, dos filmes com a Ava Gardner que se viam em Benguela, da Flama de 23 de Abril de 1975 (título de capa: “Angola: O Êxodo”) e da visão hiper-realista de um átrio coberto de malas e cobertores como se fosse outra vez 1975 e não desse jeito nenhum que aquelas pessoas viessem para ficar. Não será possível para quem veio, não será possível para quem ficou e nem sequer será possível para quem nunca esteve “lá”, até porque Retornos, exílios e alguns que ficaram não quer ser apenas o espectáculo em que 25 retornados contam como perderam tudo e ainda foram insultados por cima. “Para nós é muito importante ter um público misto que permita que haja discussão no final. Tal como seria importante ir ver o outro lado, falar com os angolanos e moçambicanos de quem estas pessoas dizem ter ficado amigas, que estas pessoas dizem ter prezado”, conclui Joana Craveiro.

Mas essa, claro, seria toda uma outra conversa — e ainda mal começámos esta. 

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