O homem que nos ensinou a cantar novamente

Brian Wilson quis fazer uma obra-prima e conseguiu-o. Pet Sounds é um marco inultrapassável na música pop. Mas é mais que isso. É um guia de sobrevivência. Isso o que celebraremos esta sexta-feira à noite no NOS Primavera Sound.

Foto
FOTO: Michael Ochs Archives/ Getty Images

No final de 1964, no final de um voo entre Los Angeles e Houston, Brian Wilson, o baixista, produtor e compositor dos Beach Boys, sofre uma crise de ansiedade e colapsa. O ataque de pânico marcou o início da sua nova vida. Nela levou a sua banda a atingir o Olimpo da música pop, antes de cair num limbo durante tempo demais, vivendo em lugar nenhum, trágico refugiado da paranóia na sua cabeça e do desnorte psicológico a que o conduziram LSD em demasia, um pai abusador, primeiro, e um terapeuta charlatão, depois.

Em 1963 escrevera In my room, a canção que é habitualmente considerada primeiro sinal da transformação dos Beach Boys de celebradores do êxtase de sol, surf, carros e amores adolescentes, em narradores do espaço tão vasto e tão complexo que é a intimidade dos nossos pensamentos, dos nossos sonhos e angústias enquanto seres que pensam o mundo, que se sonham no mundo, que amam e sofrem no mundo. Ouvimos os primeiros versos de In my room: “There’s a world where I can go/ and tell my secrets to/ In my room”. Ouvimos a canção despedir-se: “Now it’s dark and I’m alone/ But I won’t be afraid/ in my room”.

Quatro anos depois, Brian Wilson não encontrava qualquer paz no seu quarto, só medo e demónios. Para trás, ficava Pet Sounds, o ponto mais alto da viagem (e viragem) musical iniciada em In my room, o álbum de uma vida, de todas as vidas – basta ouvi-lo uma vez: não sairemos incólumes da experiência. Para trás ficava SMiLE, o sucessor de Pet Sounds, a “elegia adolescente a Deus”, como o seu autor o descreveu, que só conheceríamos quatro décadas depois.

“Por vezes desejamos que o Brian fosse mais duro – que fosse esta personagem extravagante, ao estilo de Prince, a fazer o que bem entende”, confessava à revista Mojo Wayne Coyne, vocalista dos Flaming Lips, em 2012. “Mas sabe, nós é que somos os sortudos, porque temos esta pessoa vulnerável a fazer música vulnerável. Talvez não seja tão afortunado para ele, mas é-o para nós”. Que somos afortunados, isso é certo. Temos essa certeza uma e outra vez, sempre que nos deparamos com a música que Brian Wilson gravou com os Beach Boys naquele curto período que sucedeu ao colapso na viagem de avião. Naquele momento, Wilson trocou os palcos pelo estúdio. E a música pop preparou-se para atravessar uma revolução que a transformou profundamente.

Esta sexta-feira, às 20h, no Parque da Cidade, no Porto, o NOS Primavera Sound viverá um momento solene. Ou melhor, uma festa com toda a solenidade da pop – ou seja, cantaremos e dançaremos com a banda em palco, iremos emocionar-nos com as melodias e harmonias, sentiremos que aquela música composta por Brian Wilson há cinco décadas é também nossa, que somos nós aqueles que canta.

A 5.ª edição do NOS Primavera Sound teve início esta quinta-feira. Até sábado, passarão pelos seus quatro palcos históricos de longa data, confirmações (mais ou menos) recentes, revelações inescapáveis ou bandas que acabaram de nos aparecer no radar. Enfim, a (boa) normalidade a que o festival nos habituou, primeiro em Barcelona e desde 2012 no Porto. Quinta-feira destacaram-se em cartaz os Animal Collective, os Sigur Rós, os Deerhunter, Sigur Rós ou Sensible Soccers. Para sábado, o último dia, estão programados Ty Segall, Air, Car Seat Headrest ou Neil Michael Hagerty. Hoje, sexta-feira, há Savages e Beach House, Destroyer e Cass McCombs, PJ Harvey e Mudhoney. Tudo muito apelativo. Mas hoje é o dia em que Brian Wilson estará no Porto para interpretar Pet Sounds (e não só). E Pet Sounds, e Brian Wilson a interpretá-lo, será uma experiência maior, como aliás concordarão 97% dos músicos presentes no festival. 

Nos anos 1960, em conversa com Andrew Loog Oldham, esse dandy admirável que se disfarçava de agente dos Rolling Stones, Brian Wilson afirmou com convicção: “Um dia as pessoas rezarão com a nossa música”. Em 2016, dizem-nos os relatos da digressão de comemoração dos 50 anos de Pet Sounds, diz-nos aquilo que sabemos sobre esta música, rezaremos, profanos nas alturas, ao som do deus frágil, humano, demasiado humano, que criou uma colecção de hinos para nos ajudar a compreender o mundo e para sobreviver nele. Brian Wilson, que se propusera criar uma obra-prima, não menos, quando começou a compor Pet Sounds, ficaria certamente feliz ao saber que sim, “rezaremos” ao som da sua música. Ao falar do disco, porém, é mais modesto.

Em 2006, quando da digressão comemorativa dos 40 anos do álbum, anunciada como a última vez em que seria apresentado ao vivo (era mentira, e já se previa à altura que o fosse, mas não só perdoamos Wilson, como lhe agradecemos), descreveu-o como “um manifesto artístico com muito amor no interior” – declaração concisa, mas factualmente correcta. Há um mês, em entrevista ao site Consequence of Sound, entre as respostas monossilábicas que marcam por estes dias a sua interacção com a imprensa, sobressaía esta: “Pet Sounds é acima de tudo as suas harmonias. Aquelas harmonias que nos soam bem” – e também é verdade: Pet Sounds são as harmonias celestiais, aparentemente supra-humanas, o arrojo da instrumentação utilizada e da experimentação com a composição, o talento dos músicos de topo envolvidos, guiados por um criador em estado de graça, maestro febril na perseguição à sua musa. Pet Sounds é reeditado esta sexta-feira em vários formatos: o vinil em stereo e mono, reproduzindo o original de 1966; uma edição de colecionador com 4 CD/Blu-ray, que inclui excertos de todo o processo de gravação; e uma outra de dois CD, agrupando as versões mono e stereo.

Foto
FOTO: Michael Ochs Archives/ Getty Images

Na supracitada reportagem da Mojo, o guitarrista e vocalista Al Jardine, velho companheiro de banda que, juntamente com o filho, integrará o concerto no Primavera Sound, recordava o primeiro impacto de Pet Sounds nele, em Dennis e Carl Wilson, irmãos mais novos de Brian, em Mike Love, o primo, e em Bruce Johnston, que substituíra Brian na formação de palco dos Beach Boys. “Não o percebemos à primeira. O Brian era, e ainda é, extremamente impulsivo quanto à sua musica e aos seus grandes planos. Não conseguia esperar mais até nos tocar o que tinha”. Eles, “com jet lag e um pouco atordoados” pela vida constante na estrada, não perceberam o que tinham perante si. “Tínhamos muito pouco tempo para descontrair. Estávamos a ser dirigidos por promotores que queriam vender bilhetes para os concertos. E depois chegávamos a casa para ser guiados pelo Brian! E ele estalou o chicote”, afirmou Al Jardine, antes de dizer esta coisa preciosa: “Basicamente, o Brian pôs-nos a aprender a cantar novamente”. É exactamente isso. Aprender a cantar novamente. Ouvir o que nunca tínhamos ouvido sobre aquilo que, no íntimo, conhecemos desde sempre.

Génio e ingenuidade

Quando aquele avião aterrou em Houston no final de 1964, o aterrorizado Brian Wilson dava o primeiro passo. Depois chegou o afastamento do pai, Murry Wilson, que dirigia os destinos dos Beach Boys como um tirano com tendência para a crueldade psicológica, exercida principalmente sobre o mais velho mas também mais frágil dos irmãos Wilson. Por fim, o início da aventura com LSD. “Para o Pet Sounds foi definitivamente o LSD [a droga que exerceu maior influência]”, dizia à Mojo. “Escreverias aquelas canções de qualquer maneira”, contrapõs Al Jardine. “Não. O LSD ajudou-me um pouco, definitivamente”, insistiu Wilson. Desconhecendo a real relevância do doping químico, certo é que, em Brian Wilson, as revelações do LSD não resultavam em música que ambicionava ser tradução sonora de uma trip: a primeira canção que compôs depois da primeira experiência, segundo o próprio, foi California girls, um hit pop para todos os verões, independentemente da geografia nomeada. Brian Wilson operava de forma diferente.

Entregue por completo à composição no estúdio, Brian Wilson dedicou-se a dar corpo à sua ambição. Inspirado pela ideia de álbum como manifesto pop artisticamente relevante, tal como exposto pelos Beatles em Rubber Soul, conhecedor profundo do trabalho de Phil Spector, o genial produtor inventor do Wall of Sound, admirador desde tenra idade de Gerwshin e das harmonias vocais do doo-wop e, acima de tudo, curioso pelas possibilidades do som, sempre aberto à experimentação, Wilson preparava-se para transformar os Beach Boys. Eram a mais famosa banda americana, eram os autores de Surfin’ USA, Fun fun fun, Help me Rhonda ou Dance dance dance. Passariam a ser a mais importante banda americana, respeitados pela aristocracia pop – os Beatles não paravam de tomar notas – e bem além dela: em 1967, o maestro Leonard Bernstein escolheu Brian Wilson como representante máximo de uma revolução musical em curso na música popular urbana.

Nos United Western Recorders, em Los Angeles, Brian Wilson tinha à sua disposição a nata dos músicos de sessão da cidade. Músicos experientes, habituados a despachar quatro ou cinco pérolas por dia ao lado de Frank Sinatra, Elvis Presley, Righteous Brothers, Ike & Turner, etc, etc (a lista é infindável). Viriam a ser conhecidos como Wrecking Crew e, apesar do currículo distinto, apesar de, inicialmente, Brian Wilson lhes ter parecido, no seu rosto redondo emoldurado por corte de cabelo à Beatle, na sua tendência em fugir às regras musicais, mais um jovem excêntrico de 23 anos que um compositor cujo talento deveria ser lado a sério. Mas depois, como vemos nas melhores cenas de Love & Mercy, o biopic protagonizado por Paul Dano e John Cusack, a Wrecking Crew rende-se e entrega-se àquela criatividade torrencial. Com Wilson, trouxeram theremins ao coração da pop, utilizaram latas de refrigerantes como percussão, viram-no criar novos sons em piano preparado, como John Cage, seguiram as suas instruções mesmo quando não percebiam como iriam aqueles módulos de canção resultar no final – Brian, que tinha a música toda na cabeça, sabia perfeitamente.

As letras, na ausência do habitual co-letrista Mike Love, eram trabalhadas com um publicitário chamado Tony Asher. “As ideias para letras que ele sugeria eram uma combinação de ingenuidade e romantismo, com uma certa tristeza por trás”, recordava Asher. “Ele fitaria a distância e diria, ‘houve esta vez que estava com a minha mãe e descer a rua…’, ou ‘alguma vez conheceste uma rapariga na escola, a mulher mais bonita, e depois ela tornou-se diferente?’, que se tornou Caroline no”.

Entretanto, os restantes Beach Boys, atordoados por jet lag, regressavam ao estúdio para aprenderem novamente a cantar. As intrincadas harmonias vocais de Pet Sound”, aprimoradas demoradamente, nota a nota, têm uma qualidade fora deste mundo – atestam que Brian Wilson foi o melhor professor. Dia 16 de Maio de 1966, no mesmo dia em que Bob Dylan editou o duplo Blonde On Blonde, Pet Sounds revelava-nos Wouldn’t it be nice, a terna Don’t talk (put your head on my shoulder), a insuperável God only knows, a premonitória I just wasn’t made for these times, a tão doce quanto angustiante Caroline no. Foi o primeiro álbum dos Beach Boys a não ser distinguido com um disco de ouro. A crítica, excluindo no Reino Unido, não se mostrou particularmente entusiasmada – a aclamação chegou depois, com o álbum a servir de farol para cada nova geração de músicos e melómanos. Mike Love, que não apreciara a mudança de rumo operada em Pet Sounds, reforçou a crítica perante Wilson – achava que o primo estava a destruir a “fórmula” dos Beach Boys.

Brian continuou. Chegaria Good vibrations – que pertence a Pet Sounds apesar de não a encontrarmos no alinhamento – e, depois dela, começaria o trabalho com Van Dyke Parks na obra-prima, SMiLE, que o mundo só conheceu como pretendido 40 anos depois. Isto porque durante a sua gravação, a pressão da editora e de Mike Love, as dificuldades técnicas em criar a música exactamente como pretendido e uma fragilidade psicológica cada vez mais evidente levaram a melhor. Brian Wilson, doente, desaparecia no quarto – que já não era o refúgio de In my room, era o túmulo em vida de um homem doente.

Dominado em todos os aspectos da sua vida por Eugene Landy, um terapeuta charlatão e abusador – tal como o fora antes Murry Wilson -, Brian Wilson tornava-se uma sombra de si próprio. Em 1999, quando interpretou Pet Sounds pela primeira vez, parecia alguém ausente no palco, olhar perdido no vazio, receoso de tudo o que o rodeava. Pouco a pouco, foi ressurgindo. Voltou a editar regularmente, voltou a olhar o mundo com confiança. Nunca recuperou totalmente e conta-se que continua a ouvir as vozes que o levaram a encerrar-se no quarto da sua mansão em Los Angeles durante, diz a lenda, três anos seguidos. Mas temo-lo novamente, vivo na música perfeita que criou há 50 anos.

Enquanto gravava Pet Sounds, Brian Wilson era preciso nas instruções que dava, mesmo quando fugia à linguagem a que os músicos estavam habituados. Entre os muitos, tantos takes que exigia aos músicos até que os sons na sua cabeça correspondessem ao que ouvia nos Western Studios de Hollywood, instruiu a certa altura: “Façam isto perfeito, ok?” E eles, guiados por ele, fizeram tudo perfeito. 50 anos depois, nada mudou. Continuamos a ouvir o perfeito Brian Wilson do perfeito Pet Sounds

Começa assim: “Wouldn’t it be nice if we were older/ Then we wouldn’t have to wait so long/ And wouldn’t it be nice to live together/ In the kind of world where we belong”. E termina com estes versos: “Could I ever find in you again/ The things that made me love you so much then/ Could we ever bring them back once they have gone/ Oh, Caroline no”. Ninguém disse que era fácil o mundo perfeito de Pet Sounds. Mas nunca ouvir que dói fundo aqueceu tão plenamente os corações em que a vida bombeou sangue. É por isso que rezaremos. Como Brian Wilson nos ensinou.

Sugerir correcção
Comentar