O hip-hop é a vida deles

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Há muito que não se via uma coisa assim na música portuguesa. Em quatro meses, foram lançados oito álbuns de hip-hop de produção nacional.

O último é dos Irmandade. Uma nova geração irrompe, pronta a afirmar-se num mercado onde a apetência pelas "músicas negras" é ainda reduzida. Mas eles acreditam tanto que apetece acreditar com eles. Em Portugal, existe a ideia de que os músicos pop nacionais se queixam. Das editoras, do mercado, da imprensa, do vazio de um circuito de salas de concerto, de faltas de apoio estatais, da inexistência de uma política concertada tendo em vista a exportação da música pop portuguesa. Algumas dessas críticas fazem sentido, mas normalmente elidem o essencial.

Antes de alguém acreditar neles, têm que ser os músicos a acreditar em si próprios. Têm que ser eles a acreditar na sua música, naquilo que têm para dizer, e nas muitas formas possíveis de a difundir. Hoje, olhando em redor, parece que a maior parte não acredita. Antes de começar já desistiu.

E, depois, inevitavelmente, gera-se o remoinho de lamúrias. Ou, então, o contrário disso, a fuga para a frente. E a ideia de que pelo facto dos GNR e dos Divinus estarem nos primeiros lugares do top nacional de vendas a música que é feita em Portugal está bem e recomenda-se. Quem quiser que enfie a carapuça.

É neste contexto que está a surgir uma nova geração de gente nova a fazer música hip-hop em Portugal. Os discos que lançam têm um ar artesanal, a música que criam necessita de ser depurada, as ideias ainda revelam verdura, mas possuem aquilo que falta a muitos dos músicos pop em Portugal. Generosidade, acreditar naquilo que estão a fazer e directrizes para lá chegar.

Mensagem de união

Não nasceram de geração espontânea, e aquilo que se está a suceder entre nós andou a germinar nas "margens". A diferença é que agora têm conseguido visibilidade. Residem nos grandes centros urbanos, são MCs, DJs, produtores ou "graffiters". Fazem música no quarto, em estúdios improvisados, e sabem que criar apenas a música não basta. É necessário existirem suportes em redor e uma noção colectiva do que se quer atingir. É por isso que começam a surgir editoras especializadas (como a Loop), programas de rádio, noites temáticas (por exemplo, na ZDB, em Lisboa), lojas de discos (a KingSize é a mais conhecida) e de roupa.

Nos últimos meses, uma série de álbuns têm sido lançados. O último é dos Irmandade, um colectivo que integra quatro membros de outras formações. O luso-croata D-Mars foi o mentor. "Nascemos com o intuito de dar uma mensagem de união às novas gerações do hip-hop", refere. "Pertencemos todos a outros projectos - eu e o Sagas somos dos Micro, o Fuse é dos Dealema, do Porto, e o Rídiculo é dos Mundo Complexo -, mas existe um entendimento musical comum".

Tal como os restantes discos lançados recentemente, também o dos Irmandade foi registado num estúdio rudimentar. "No meu quarto, com microfones da Sony de supermercado, num multi-pistas digital", conta D-Mars. "Mas fizemos truques que parecem saídos de estúdios sofisticados. Gravámos as bases instrumentais primeiro e depois adaptámos as letras". Mas o baixo custo de produção não ajuda a explicar tudo. Outras tipologias fazem uso do mesmo tipo de tecnologia e não consta que exista um fluxo de edições como aquele que se revela neste momento no hip-hop.

D-Mars acompanhou a sua evolução em Portugal, participou na compilação "Rapública", de 1994, e não tem dúvidas sobre a sua relevância, mas assinala diferenças em relação a esses tempos. "A 'Rapública' foi importante porque constituiu o primeiro encontro entre o hip-hop e a indústria. Alguns aguentaram-se, outros não. Esta geração tem uma noção do que resultou e falhou. Tem outras referências, inclusive portuguesas, que nós não possuíamos. A tecnologia mudou e existe mais gente a fazer esta música. De tal forma que vamos a uma loja como a KingSize e vemos uma parede repleta de hip-hop nacional".

Semear a palavra do hip-hop

Depois da experiência embrionária de "Rapública" e de outras paralelas como General D, os Da Weasel ou os Mind Da Gap, parece que o hip-hop desapareceu do mapa. Ilusão. Nas "margens", nos pequenos estúdios e em alguns locais nocturnos, nomes como Sam The Kid, Micro, DJ Assassino ou o colectivo Raska iam semeando a palavra do hip-hop. O que fez continuar esta gente? Acreditar, persistir, investir.

"Saber que o trabalho que estava a ser desenvolvido iria ser ouvido. A própria Irmandade é um trabalho de persistência", diz D-Mars. "Isto é a minha vida, faz parte do meu dia-a-dia. Se não insisto, se não acredito, não sei o que iria ser do meu mundo. Ninguém vai fazer por mim aquilo que tenho de ser eu a fazer. São as minhas rimas, é a minha alma".

Para além de D-Mars, os Irmandade são constituídos pelo jogador de futebol profissional Sagas, pelo "designer" gráfico Fuse e pelo marinheiro Rídiculo. "Mas antes, são acima de tudo hip-hop. São essas actividades que lhes permitem fazer hip-hop", argumenta o luso-croata.

Uma das características desta geração, que funciona como oposição ao que se passa no restante universo pop português, é a apetência para consumir o que é português. "O hip-hop é o verbo", diz D-Mars. "Tem a ver com a língua, com a compreensão daquilo que se diz. Existe uma identificação ao nível do imaginário. Tento que aquilo que digo faça sentido para outras pessoas".

Já não se tenta copiar apenas os modelos americanos. A expansão dos mercados do género em França, em Inglaterra ou na Alemanha provou que é possível existir uma especificidade local num mundo global de referências partilhadas. Alguns destes projectos misturam batidas hip-hop com soul, funk, r&b, mas também música ligeira portuguesa, africana, música para cinema, música cigana ou bossa nova. "As fontes sonoras ampliaram-se", reconhece D-Mars. "Existe o cuidado de variar, de abrir os horizontes, de não ficar fechado. Os americanos, do ponto de vista técnico, são exímios. Em França, a indústria é fortíssima. Em Portugal, temos que ser imaginativos".

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