O grão de poeira

2084 – O Fim do Mundo talvez não seja um grande romance, mas é um magnífico e necessário panfleto contra a renúncia à razão e à vida, contra a obediência cega, surda e muda.

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Boualem Sansal continua a viver na Argélia, apesar de censurado e ameaçado foto: DR

Autor das duas mais poderosas e influentes alegorias políticas do século XX – A Quinta dos Animais e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro –, George Orwell dedicou o melhor da sua actividade enquanto escritor à denúncia do estalinismo e do nazismo, consciente de que, até mesmo (ou sobretudo) entre as pessoas “esclarecidas” dos países democráticos ocidentais, a propaganda totalitária dos anos 30 e 40 do século passado ganhava adeptos e influência. Aparentemente, o escritor argelino Boualem Sansal (n. 1949) está convencido de que o Ocidente enfrenta agora, com idêntica condescendência ou distracção, uma nova ameaça totalitária: o fundamentalismo religioso de raiz islâmica. E contra isso escreveu 2084 – O Fim do Mundo, romance que, tendo obtido o Grande Prémio da Academia Francesa em 2015, vale sobretudo como sarcástico e corajoso panfleto contra o obscurantismo religioso. Dizemos corajoso porque este escritor tardio, que escreve em francês e que publicou o primeiro romance em 1999, continua a viver na Argélia, apesar de censurado e ameaçado. Engenheiro e economista, Sansal foi um alto funcionário público, antes de cair em desgraça. E convenhamos que o presente clima político e intelectual na Argélia será dificilmente comparável, apesar de tudo, àquele vigente na Inglaterra de há setenta ou oitenta anos.

2084 – O Fim do Mundo é, em quase tudo, um romance epigonal. Mas haverá também, nesta assumida característica, uma certa e indisfarçável coragem do autor, e, sobretudo, uma urgência que não perde tempo com circunstanciais vaidades literárias. A data inscrita no título limita-se, aliás, a logo explicitar a homenagem a Orwell: «[…] era uma data fundadora para o país, embora ninguém soubesse a que é que ela correspondia.» O subtítulo, reactualizando o muito conhecido lema do Partido, em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro – quem controla o passado controla o futuro e quem controla o presente controla o passado –, descreve um mundo no qual «o presente era eterno». Um mundo sem História, portanto. Ou um outro mundo pós-histórico. De igual modo, aos famosos slogans exemplificativos do “duplipensar” de Ingsoc – «A guerra é a paz», «A liberdade é a escravatura» e «A ignorância faz a força» – o Abistão, o novo mundo imaginado por Boualem Sansal, soma outros três: «A morte é a vida», «A mentira é a verdade» e «A lógica é o absurdo». Porque também a língua falada e escrita no Abistão, chamada abilang, foi decalcada da novilíngua orwelliana. Trata-se de «uma língua militar, concebida para inculcar rigidez, concisão, obediência e amor à morte». E se o Big Brother tudo vê e controla no romance de Orwell, 2084 contrapõe-lhe Bigaye, o outro nome de Abi, tão omnipresente quanto o seu único Deus, Yölah.

As guerras, sobretudo as «guerras santas», são, como sabemos, excelentes máquinas de «transformar fiéis inúteis e miseráveis em gloriosos e lucrativos mártires». Centenas de milhões de mártires e várias guerras santas depois, eis-nos no Abistão. A vitória sobre o infiel «Inimigo» fora «total, definitiva, irrevogável». A tal ponto que «a palavra Inimigo desapareceu do léxico». Tal como a palavra Fronteira. Pois que fronteira poderá haver num mundo globalizado por uma «miséria pantagruélica» e pela «Santa Submissão» à «máquina titânica» de uma fé religiosa despótica e totalitária? «Yölah é grande e Abi o seu fiel Delegado»: eis tudo quanto é preciso saber, nove vezes por dia, neste mundo novo, no qual «não existia outra economia senão a religiosa». Também aqui não havia alternativa. Um inferno que já nos é familiar.

Mas até mesmo «a maior sabedoria do mundo curva-se perante o grão de poeira que emperra o pensamento». E é assim que Ati, o protagonista acidental desta narrativa, inofensivo e ignoto cidadão, ou nem isso, apenas um tísico que regressa de um ano de internamento num sanatório na montanha mais distante do «deserto estéril que é o Abistão», eis que Ati vislumbra «uma pequena raiz de liberdade» na «natureza exuberante da dúvida» que involuntária e febrilmente dele se apossa. E, é sabido, «uma vez posto em marcha, o mecanismo da dúvida não pára».

2084 – O Fim do Mundo talvez não seja um grande romance, mas é um magnífico e necessário panfleto contra a renúncia à razão e à vida, contra a obediência cega, surda e muda, e contra «o ódio elevado à categoria de religião», para retomarmos aqui a fórmula que Boualem Sansal usou há uns anos, em resposta a uma carta aberta de Jean Daniel no Le Nouvel Observateur.

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