O grande cinema italiano ficava todo em família

A Titanus foi uma das grandes produtoras e distribuidoras italianas após a Segunda Guerra Mundial. A retrospectiva que lhe foi dedicada no festival de Locarno explicou como o estúdio que produziu O Leopardo, de Visconti, dirigido por uma figura de produtor como já não existe, é exemplar de um cinema que já não volta mais

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Mesmo trabalhando com autores como Visconti – co-produziu o emblemático O Leopardo –, Goffredo Lombardo considerava-se à sua maneira um "autor"
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Outono Escaldante, de Valerio Zurlini, um dos cineastas centrais da “nova vaga” de autores de finais dos anos 1950
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Foi a Titanus a lançar Totó, comediante napolitano que se tornou numa das vedetas maiores do cinema italiano dos anos 40 e 50

A par das estreias mundiais (a concurso ou fora dele) ou das passadeiras vermelhas, há uma outra dimensão dos festivais de cinema que tem vindo a ganhar vida própria. Este ano, foram muitos os cinéfilos de todo o mundo que fizeram a peregrinação a Locarno para ignorar as últimas revelações do cinema de autor e as presenças de convidados como Juliette Binoche. Em vez disso, preferiram encerrar-se, durante os dez dias do festival, no velho cinema Rex (que reabre exclusivamente para o certame) numas escadinhas transversais à Piazza Grande.

A ocasião? Uma retrospectiva dedicada à produtora e distribuidora italiana Titanus, com cerca de 50 filmes maioritariamente do pós-Segunda Guerra Mundial, projectados em cópias de 35 mm (quer de época, cedidas pela Cineteca di Bologna, quer em tiragens novas feitas pela Cinemateca Italiana). Obras de cineastas “populares” como Raffaello Matarazzo, Camillo Mastrocinque ou Carlo Ludovico Bragaglia ombrearam, durante dez dias, com filmes de género (os peplum mitológicos, os gialli violentos e os musicarelli, musicais yé-yé com estrelas do momento) e com o cinema de “autor” de Michelangelo Antonioni, Federico Fellini ou Luchino Visconti. A selecção, centrada no período ainda hoje considerado a “idade de ouro” do cinema italiano, entre 1945 e 1965, coube aos críticos italianos Roberto Turigliotto e Sergio M. Germani, com a ideia paralela de revelar cineastas maiores que rodaram regularmente com o estúdio mas cuja obra nunca recebeu o aplauso devido.

“Cineastas como Guido Brignone, Matarazzo, Mastrocinque, Bragaglia não são considerados autores como os autores do cinema americano de género porquê?”, perguntou Germani (igualmente director do festival I Mille Occhi em Trieste) numa mesa-redonda aberta ao público, antes de citar, especificamente, dois cineastas a quem o ciclo de Locarno pretendeu prestar homenagem. Foram eles Raffaello Matarazzo, autor do primeiro grande êxito produzido pela Titanus no pós-guerra, Repudiada, de 1949 (um dos sete filmes de Matarazzo que passaram na retrospectiva, a par de Tortura de Mãe, Regresso ao Lar, Anjo Branco ou Os Filhos de Ninguém, vários dos quais já foram objecto de reedição na prestigiada Criterion); e Valerio Zurlini, um dos cineastas centrais da “nova vaga” de autores de finais dos anos 1950, de quem se mostraram quatro filmes – Um Verão Violento, Outono Escaldante, A Rapariga da Mala e Dois Irmãos Dois Destinos. O título italiano deste último, Cronaca Familiare, serviu aliás de “inspiração” para a designação genérica do ciclo – Crónica Familiar do Cinema Italiano. Ou não fosse a Titanus, nas palavras de Roberto Turigliotto, “uma rede que atravessou cineastas e produtores” e teve um papel central no cinema italiano do pós-Segunda Guerra Mundial.

Dinastia familiar
Não espanta que a retrospectiva – a primeira que o festival suíço dedicou a um estúdio italiano em quase 30 anos – tenha atraído tanto interesse. O cinema italiano tem vindo a ser reavaliado e a gerar enorme interesse junto de cinéfilos, investigadores e espectadores, e a possibilidade de ver muitos destes filmes em grande écrã em película foi um chamariz importante. Mas, para quem estuda o cinema, a Titanus é uma espécie de “microcosmos” das convulsões do cinema transalpino durante os últimos cem anos. A sua importância foi tal que a crise financeira que enfrentou na primeira metade da década de 1960 lançou uma “sombra” sobre toda a estrutura de produção italiana.

Roberto Turigliotto, um dos comissários da retrospectiva, confirma-o ao PÚBLICO, em pleno bulício do átrio do Palácio Sopracenerina, centro nevrálgico do festival. “A Titanus começa como uma pequena casa de produção napolitana com dois grandes filões, o melodrama e a comédia – não a commedia all’italiana como a definimos hoje, mas uma comédia mais ‘selvagem’. Basta lembrar que foi a Titanus a lançar Totó [comediante napolitano que se tornou numa das vedetas maiores do cinema italiano dos anos 1940 e 1950]. E transforma-se ao longo dos anos em muita coisa, uma produtora, uma distribuidora, um estúdio de rodagem...”

Significativa neste processo é a identificação da firma com uma dinastia familiar, centrada na figura de Goffredo Lombardo (1920-2005), que sucedeu em 1955 ao pai Gustavo no comando da companhia e que a “legou” por seu lado ao filho Guido à sua morte, em 2005. Fora Gustavo a “estabelecer” a casa, abrindo um primeiro escritório em 1904, iniciando a produção de filmes em 1914 e consolidando as suas múltiplas actividades (produtor, distribuidor, exibidor) sob a designação Titanus em 1928. A “ascensão” ao estatuto de “império” dá-se durante a década de 1950, com os êxitos colossais de Repudiada, Pão Amor e Fantasia, de Luigi Comencini (1953), ou Pobres mas Belas, de Dino Risi (1957).


Turigliotto descreve Goffredo Lombardo como “um produtor que amou verdadeiramente o cinema, com uma paixão quase autoral”. “Existem muitos testemunhos, de realizadores como Luigi Comencini, Mario Monicelli ou mesmo Ettore Scola, que dizem que ele queria ser um autor, mas através do seu trabalho empresarial, e não substituindo-se aos realizadores. Era um verdadeiro produtor ‘à antiga’, que lia os guiões, controlava os rushes, intervinha na montagem, mesmo dos filmes que apenas distribuía.”

Sergio Germani, o segundo comissário, junta-se entretanto à conversa (chegado de uma projecção de A Batalha de Maratona numa cópia “belíssima que não era mostrada desde a estreia”). Fala das “idiossincrasias” e dos “tiques antropológicos” específicos de Itália ao citar o método de produção de Lombardo. “Faziam cálculos económicos que em alguns casos não batiam certo, mas iam em frente na mesma. Noutros casos, nem sequer faziam bem as contas.” Embora nomes importantes tivessem contrato – como o actor Renato Salvatori ou o argumentista e realizador Massimo Franciosa –, Germani fala entre risos do montador Mario Serandrei, que trabalhava em praticamente todas as produções da casa sem ter contrato efectivo. “O raciocínio de Lombardo, que abria excepções em alguns casos, era que mais valia pagar aos técnicos filme a filme do que tê-los sob contrato, porque isso implicaria pagar sem eles estarem a trabalhar!”

Mas, mais do que querer que a Titanus em si fosse “a sua obra”, Lombardo via o seu papel de produtor como “uma missão”, explica Turigliotto. “Naqueles anos o cinema tinha ainda um papel central na cultura do país, era um espectáculo popular mas de alto nível cultural. E ele tinha também uma ideia desse tipo. Havia uma tradição familiar no caso dele, e a vontade de fazer bem correspondia a uma vontade de estar à altura de uma história.” O sonho de Lombardo era o de “construir uma empresa estável e poderosa, que pudesse expandir-se para um mercado mais vasto. É um sistema que se mantém durante cerca de 15 anos.” Esse ciclo de produção esbarra numa série de apostas falhadas e sobretudo nos custos incomportáveis de duas co-produções internacionais, Sodoma e Gomorra, de Robert Aldrich (1962), e O Leopardo, de Luchino Visconti (1963), que nem o sucesso de bilheteira de ambos os filmes permitirá recuperar. Em 1965, a Titanus vê-se forçada a interromper a actividade de produção, concentrando-se exclusivamente na distribuição ao longo dos 20 anos seguintes.

Germani explica como a Titanus se tornou a certa altura no “objectivo da própria vida” de Goffredo Lombardo. “Outros produtores muito importantes para esse período, como Dino de Laurentiis ou Franco Cristaldi, não tiveram problemas quando se tratava de fechar a empresa, ir para o estrangeiro, pôr o arquivo a render; tinham consciência que era o fim de uma época. Para Lombardo não; a época podia terminar, mas era preciso continuá-la de algum modo.” Ainda assim, era evidente que os tempos haviam mudado, e o produtor acabará por desistir da produção para cinema e refugiar-se na ficção para televisão, regressando tardiamente, como uma espécie de “último hurra”, em finais dos anos 1980, com filmes como O Professor, de Giuseppe Tornatore (1986). “Goffredo Lombardo percebeu que o tipo de público popular que constituía a base do cinema italiano tinha desaparecido", diz Turigliotto. “Houve uma espécie de desamor para com uma situação em que já não podia fazer os filmes em que acreditava.”

Com o surgimento em 1976 dos primeiros canais privados, Goffredo Lombardo, que sempre fora politica e estrategicamente astuto, vende em 1979 à Rete Italia de Silvio Berlusconi os direitos de exibição do catálogo de filmes. Programados em matinées de dia de semana, os grandes melodramas, as comédias populares ou os musicarelli com Gianni Morandi obtêm um grande sucesso de audiências reencontram o seu lugar na cultura de massas. Mas os novos tempos não permitem à Titanus recuperar o estatuto anterior – Sergio Germani cita o caso paradoxal que serve de “exemplo” para o destino da ficção italiana pós-1980. Uma das últimas produções da companhia, Buon Natale Buon Anno (1989), de Luigi Comencini, “tentativa de reencontrar o carácter melodramático dos filmes que tinham feito a história da casa”, é um desastre de bilheteira. Mas torna-se num enorme êxito popular quando é, anos mais tarde, exibido na televisão que tanto fizera para devolver ao público os “anos de ouro” da Titanus, lançando igualmente uma peculiar nostalgia de um tempo que não volta mais.

Para Roberto Turigliotto, “existia uma grande riqueza do cinema italiano que ultrapassava a Titanus e que é muito difícil de reencontrar posteriormente". "Era", argumenta, "um dos grandes cinemas desse período, quer em número de autores grandes e importantes, quer em capacidade de fazer um grande cinema popular de grande nível estético.” E ao contrário do que hoje pensamos, produzir ao mesmo tempo Fellini (que filmou na Titanus O Conto do Vigário, em 1955) e os melodramas de Matarazzo não era esquizofrénico nem calculista, como diz Sergio Germani. “Naquele momento não existia a distinção que fazemos entre filmes populares e cinema de autor. E mesmo que ele achasse que também deveria financiar cinema de autor, Goffredo Lombardo nunca fez filmes só para ganhar dinheiro.”

A prova disso viu-se durante dez dias em Locarno.  


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