O gin como remédio para os males do império

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No fim dos anos 60, o TEP viu a produção deste mesmo texto de John Osborne, O Animadorproibida pela censura. As referências ao fim do império de sua majestade e, em especial, à invasão do Egipto por militares israelitas, franceses e ingleses (a guerra do Canal de Suez) não terão ajudado.

Em Portugal, recorde-se, em 1966 havia mais de 75 mil combatentes em Angola, na Guiné e em Moçambique. Isso e muito mais que vem na peça era matéria suficiente para recusar o pedido de autorização. Quase 50 anos depois, o texto continua actual, como se costuma dizer. Não é que haja muitos portugueses em teatros de guerra. Mas o ar de fim de regime que a peça tem, e que passa tanto pela revolta contra o sistema de classes sociais no Reino Unido, como pela mudança na forma de fazer teatro que acontece na década de 50, ecoa no quotidiano deste pobre país periférico, o mais desigual da Europa, onde o teatro político tem revidado ultimamente. A versão de Rui Pina Coelho do texto escrito em 1957 por Osborne faz essas pontes entre o presente e o passado. As cores da bandeira britânica podem ser outras, mas ainda assim representam um país em estado de sítio.

A personagem principal, Archie Rice, é um actor de segunda que faz números de music-hall e assume, na vida, o papel de um Don Juan pelintra que desafia as convenções sociais e qualquer tipo de autoridade, tentando seduzir não só as donzelas mas também os espectadores, e pondo-se fora da alçada da lei, em especial do Estado cobrador de impostos.

Certamente não quer o número de contribuinte na factura quando vai comprar o gin para entreter as coristas. O formidável João Pedro Vaz é quem representa este rebelde que se faz consumir pelos excessos, mas mantém inabalável as suas convicções (poucas) e não se deixa subjugar por ninguém, muito menos pelos que ama.

É aqui que entram as outras figuras desenhadas por Osborne e os desempenhos extraordinários de cada um dos actores, que representam sem esforço aparente e apresentam com pungência real os casos verdadeiros de Billy (António Júlio), Jean (Íris Cayatte), Phoebe (Maria do Céu Ribeiro) e Frank (Manuel Nabais), cujos falhanços na vida revelam a respectiva humanidade e, desse modo, as fazem brilhar. A figura de Archie é o condutor destes fados, que são partilhados com os espectadores em cada fala, gesto e olhar, e cujos desdobramentos constituem o verdadeiro espectáculo, doenças do império à parte.

O teatro assume a etiqueta de político quando é feito por artistas a viver em condições de precariedade, mas que ainda têm esperança de mudar o estado das coisas e alguma capacidade de revolta. Quando é feito por quem tem influência junto das instituições, ou se estabelece como entretenimento ou se apresenta como arte pela arte. E se incluir os desvalidos, claro, é dito comunitário.

Porém, uma certa pose de protesto tornou-se indispensável para manter a reputação de todos os artistas, passando a fazer parte do espectáculo da fama, e tornando difícil distinguir o que é político do que é apenas poder. Esta peça mostra como não se deve confundir a hipocrisia com a indignação autêntica.

Simplificações à parte, o texto é não só de protesto social, como de revolta existencial perante a ordem do mundo. A encenação de Gonçalo Amorim, em estreito diálogo com o cenário de Catarina Barros, tenta desmontar os fingimentos do Poder ao mostrar os fingimentos de cada um.

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