O futuro é tão brilhante que temos de usar óculos escuros

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O realizador J.J. Abrams viaja até à inocência de "Star Trek", até à juventude de Kirk e Spock. Assim se renova um dos patrimónios da pop - cinco séries de TV e dez filmes. E assim se renova a nossa capacidade de maravilhamento e de acreditarmos num futuro radioso - pelo menos durante duas horas. O Ípsilon falou com a equipa de "Star Trek!

No século XXIII, em plena planície de Iowa, ouve-se "Sabotage" dos Beastie Boys aos berros enquanto se conduz sem carta. A cultura pop está sempre lá e ser jovem é isto. E rejuvenescer um "franchise", uma propriedade com a relevância (e algum mofo) cultural de Star Trek, também é isto. É conseguir fazer um filme sem costuras entre o que é aventura e o que é comédia, entre o que é personagem e o que é efeito especial. "Star Trek" é mais, maior e melhor. E mais brilhante. Aqui, o futuro é tão brilhante que há que usar óculos escuros.

No reino do "blockbuster" de Verão tem-se tentado tudo: filmes baseados em brinquedos, feiticeiros pré-adolescentes, comédias arriscadas, heróis BD ou musicais. Nos últimos anos foram ressuscitados "franchises" dos anos 1960/70/80 com os mais variados protagonistas - "James Bond", "Guerra das Estrelas", "Batman". Quando, há três anos, J.J. Abrams era desafiado pela Paramount a pegar num novo "Star Trek", qualquer coisa se alinhou nas constelações, estrelas, planetas, naves e federações estelares. Ele quis pegar em 43 anos de história Trek (cinco séries de TV, dez filmes e um estado moribundo apesar da fidelidade, paixão e fanatismo dos fãs) e abri-la. Ao mundo, às massas - tornar um culto, uma narrativa de ficção científica, numa viagem de entretenimento que simboliza a sua história pessoal. Dizem as críticas que conseguiu.
"Star Trek" é uma síntese, tal como J.J. Abrams é uma figura de síntese: tal como Lucas ou Spielberg, faz as suas séries e filmes a partir do seu imaginário juvenil, dos produtos que consumiu. No caso de Abrams, viu o cinema de Lucas e de Spielberg. Mas também viu "A Quinta Dimensão".
E é assim que quando chegamos às poeiras de Riverside, no Iowa, terra natal de James Tiberius Kirk, até podemos ver ali as estradas de "American Graffiti". Mais tarde, quando é altura de voar para São Francisco e, depois, para a "fronteira final" (o espaço, no caso de terem estado encerrados num quarto insonorizado durante os últimos 40 anos), sentem-se as atmosferas de "Guerra das Estrelas", os conflitos de filiação de "Indiana Jones", vê-se o design do novo "Battlestar Galactica" e ouvem-se os sons dos anteriores Trek, mas com um novo toque.

O sonoplasta original recriou os sons para esta nova aventura "e isso tornou-se uma metáfora deste filme", entusiasma-se J.J. Abrams perante a imprensa internacional em Paris. "Tudo o que fizemos foi pegar no espírito do que foi feito há 43 anos, contá-lo no contexto de hoje e apresentá-lo de forma que funcione em alta-resolução. E não estou só a pensar no IMAX - o público hoje é mais sofisticado e está mais atento ao que vê e ouve, aos adereços, à ponte, ao guarda-roupa", diz, terminando a lista a mimetizar o som trémulo mas inconfundivelmente cine-espacial das naves.

A eterna juventude

O realizador era para ser apenas produtor. Mas foi-se convencendo de que para "não-fãs de 'Star Trek' irem ver o filme, então o filme devia ser realizado por alguém não-fã" - "Se nunca viram o Star Trek, vocês são o nosso público", avisa Abrams. E é verdade.
O que a equipa criativa (Abrams, com os argumentistas Roberto Orci e Alex Kurtzman e os produtores Damon Lindelof e novamente Abrams) tentou fazer foi equilibrar o que eram os bons velhos tempos da saga Trek com uma perspectiva fresca sobre esse universo. E, no fundo, sobre a ficção científica, sobre as narrativas de viagens espaciais que já foram exploradas até à náusea fílmica e sobre o cinema de aventuras.
Abrams faz eco das palavras dos actores que o antecederam na conversa com os jornalistas: é um membro orgulhoso de outra geração. "Eu era parte da geração 'Guerra das Estrelas'. Fui uma criança dos 80s e achava o 'Star Trek' uma série enfadonha que os pais viam'", confessa Zoe Saldana, a nova Nyota Uhura. Chris Pine (o quase desconhecido que agora é o capitão Kirk) e Zachary Quinto (que aqui é Spock e que em "Heróis" é Sylar) dizem o mesmo.

Em "Star Trek", versão J.J. Abrams, o futuro é outro. Está lá o optimismo inerente da história criada por Gene Roddenberry na era pós-Kennedy, mas sob a forma de uma história de origens. Com protagonistas jovens. "Os novos Lennon e McCartney", brinca Zachary Quinto ao lado de Chris Pine, referindo-se à dupla que interpretam, Kirk e Spock. Eles são o símbolo da fonte da eterna juventude a que estamos a ir novamente beber.
"Star Trek era Spock e Kirk antes de se tornar numa série de outras coisas", comenta J.J. Abrams. Para ele, tudo se resume ao processo de evolução das personagens. Ele quis mostrar como elas se formaram e se tornaram indivíduos e, depois, complementos. Os fãs mais radicais, aqueles que até ao início desta semana se entretinham a escrutinar os "trailers" com aguçados ciberbisturis, podem discordar. Mas é o recuar até aos anos da Academia da Frota Estelar em que Spock e Kirk se cruzam pela primeira vez, é a viagem até Vulcano, o encontro com a mãe humana e o pai vulcano de Spock, é o retrato da perda do pai de Kirk e da sua rebeldia pura de adolescente que perfazem "uma versão que dá ao público uma ligação emocional com as personagens", diz Abrams. E que simboliza a procura de um lugar no mundo. E que desenha uma narrativa de filiação - Kirk e Spock recordam-nos a cultura americana e as temáticas subjacentes ou evidentes de filmes de grande público no cinema dos anos 1980. De "O Padrinho" a "Super-Homem", de Darth Vader a Henry Jones Sénior, há sempre "daddy issues". "Talvez seja mesmo uma coisa americana", comenta David Lavery, professor de Inglês na Universidade Middle Tennessee e autor de livros sobre "Perdidos", uma das séries com a marca de água Abrams. "Os americanos são obcecados com os pais. Há uma sensação incrível de que somos uma cultura com uma fixação na mãe. E em que os pais são bens desconhecidos", reflecte.
Mas o que transpira das escolhas dos produtores e de Orci e Kurtzman é uma sensação de juventude, de frescura, da "nonchalance" juvenil sem total noção da sua inconsequência - uma utopia clássica do universo Trek, com todos os povos e espécies unidos no espaço, progressista, mas aqui nas mãos de jovens adultos com poder de combate. É um regresso às visões de "empowerment" dos jovens "mavericks" no cinema, do quero-posso-e-um-dia-vou-mandar.

Um grupo de sete jovens adultos, a vogar entre os 20 e os 30 anos, lidera um filme. Nada de novo. Luke, Leia e Han Solo também o fizeram. Até Indiana Jones ganhou um jovem na sua quarta aventura, os filmes de heróis BD não estão cheios de cinquentões e a dupla de "Transformers" roça os 20 e poucos. Mas o fascínio de "Star Trek" pela juventude, pelo seu pioneirismo, pela sua qualidade inconformista e rebelde tem a ver com um contexto. "Nos últimos anos temos visto vários filmes macabros, negros, cínicos e que representam um futuro no qual a maioria de nós não está entusiasmado em viver. Há algo de refrescante numa história sobre jovens em que há um sentido de pureza, de maravilhamento e optimismo", associa Abrams, ele próprio um menino eternamente jovem com o olhar embevecido sobre o que lhe causa surpresa.

"Num país que não tem pais muito presentes, também somos um país que sempre foi obcecado com a juventude", comenta David Lavery. "Apesar de tudo somos o país novo e também somos uma cultura empurrada pela história do Peter Pan, sobre crianças que nunca crescem". Para J.J. Abrams, tudo isto "dá confiança aos jovens públicos. Quando [a personagem do comandante] Pike (Bruce Greenwood) [que comanda a Enterprise nos primeiros momentos] estava no local de filmagens e em cena, sentíamos a presença da figura paterna. Uma vez desaparecido, foi tipo: 'O pai saiu. Oh merda!' Este filme é sobre a transformação destes jovens, da descoberta do seu melhor eu."

Uma dose extra de esperança

E será que precisamos disto, agora? "Claro. É uma das coisas que os mitos devem fazer - não só explicam porque é que o sol atravessa o céu, mas também porque é que nos levantamos de manhã, porque vivemos e porque é que continuamos em frente", poetiza David Lavery, recordando as teorias de Joseph Campbell, autoridade em Mitologia. "Os mitos guiam-nos ao estabelecer imagens de nós próprios que acabamos por incorporar. E o factor juventude é muito significativo e parece único: Star Trek nunca me pareceu ser sobre jovens".

Portanto, num mundo de "franchises" reimaginados e em que "O Cavaleiro das Trevas" é tão relevante para o espaço quanto as prequelas em queda de "Guerra das Estrelas", em que estão para chegar a versão cinematográfica de "A Estrada" de Cormac McCarthy e "Exterminador Implacável: A Salvação", o futuro tem de ser outro: uma dose extra de esperança. "O tom do filme libertou-o do cinismo actual", diz o realizador ao Ípsilon. A referência a "O Cavaleiro das Trevas" ou a "Watchmen" rola das bocas da equipa de "Trek" a cada conversa. "Aconteceu qualquer coisa e já não temos filmes assim", divertidos e para todos, lamenta Eric Bana. "O J.J. teve a capacidade de nos devolver isso", agradece o actor - que no filme é o vilão romulano Nero.

Abrams, o realizador/argumentista/produtor de síntese, é agora uma figura de referência em várias plataformas. "Ele não só é bom na concepção de séries, mas também em chamar a si excelentes colaboradores", analisa Rhonda V. Wilcox, docente de Inglês na Gordon College e editora das séries "Studies in Popular Culture" e "Critical Studies in Television".

Ele tem a capacidade de "estabelecer boas personagens em situações imaginativas" com atenção ao detalhe, prossegue. E, completa Eric Bana, actor que começou a trabalhar em televisão na sua Austrália natal, segue os seus instintos. "Em televisão, é preciso actuar e criar instintivamente" e "tendo o JJ um historial na TV, compreende a estrutura de um mundo em que a cada cinco minutos as pessoas mudam de canal se não as divertirmos". Tem um "respeito pelo público que o obriga a cumprir, a mantê-lo na ponta do assento", diz, enquanto bate as palmas de forma resoluta.

E faz entretenimento. "Há grandes ideias por trás disto, mas em última análise [o filme] significa esquecer tudo durante duas horas. Espero que muita gente possa fugir do desespero do quotidiano, deixando-nos ajudar", diz um Chris Pine compenetrado.
No ano em que J.J. Abrams nasceu, Gene Roddenberry lançava nos televisores a sua visão optimista, científica e intelectual da corrida espacial. O Vietname estava em pano de fundo, a Guerra Fria também, e JFK inspirava a criação de Kirk. Uma série sobre esperança vinha a calhar e hoje não podemos esquecer o lema da campanha do Presidente dos EUA: "Hope". Para trás ficaram os atentados terroristas de 2001, mas hoje o clima de preocupação que se abateu sobre o mundo nos últimos seis meses é incontornável.

"Esta é a altura perfeita para uma reimaginação. Quando [Star Trek, a série] apareceu, era uma época de tanta inquietação social, de duas guerras, de grandes divisões. E no comando da nave tínhamos uma afro-americana, um russo, um japonês-americano. Agora, numa altura de duas guerras [Afeganistão e Iraque], de crise económica, penso que será eficaz e apresentará uma visão da humanidade" de trabalho de grupo, considera Chris Pine.

Este não é um filme da era Obama, visto que começou a ser planeado em 2006. Mas é um filme que contém em si um acontecimento, um cataclismo a que o guionista Alex Kurtzman chama "o 11 de Setembro do filme". Fora isso, é uma montanha-russa. Nada fica de fora, nem a comédia.

Em "Star Trek", mostram-nos o nosso futuro utópico: "É bom ver uma fantasia em que sobrevivemos, trabalhamos juntos para ultrapassar barreiras raciais, políticas e culturais e até de espécies. Talvez seja ingénuo, mas é uma coisa linda ter uma visão do futuro que é cheia de esperança".

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