O frenesim da Blues Explosion e os terapêuticos Sleep em grande no Reverence Valada

No segundo dia do festival, o espaço bucólico à beira Tejo foi agitado, entre dezenas de concertos, pelo rock’n’roll de Jon Spencer e pela música majestosa da banda californiana.

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A vida de Jon Spencer depende mesmo disto, da passagem de testemunho da música que o antecedeu, da homenagem que é torna-la viva NATACHA MONTEIRO
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Al Cisneros, baixista e vocalista dos Sleep VALENTINA ERNO

Começa muito cedo e acaba muito tarde. Às 14h, enquanto alguns descansam com os pés na água do Tejo ou deitados à sombra das árvores, lançando o olhar aos palcos, já se ouve música no Reverence Festival. Às cinco da manhã, quando a luz das gambiarras penduradas pelo parque dá ao recinto uma aura misteriosa, ainda se ouve música no Reverence Festival.

Muito acontece no Parque de Merendas de Valada do Ribatejo: os Warlocks com um som altíssimo a provocarem os tímpanos com aquele shoegaze de californianos fãs dos Velvet Underground e de blues-rock; os eborenses Process of Guilt a gritarem, guturais e em ritmo compassado para headbanging zangado, as desordens do mundo que é a nossa cabeça; os Bizarra Locomotiva de culto imparável; uns holandeses chamados DeWolff a mostrarem-nos, com um órgão Hammond temerário, o que seria um concerto dos Ten Years After, em 1971, com Jon Lord na banda; os Saturnia de Luís Simões a fazerem levitar os resistentes às quatro da manhã; e os italianos Ufomammut a darem-nos a volta com riffs como bordões eléctricos, distorcidos, e imagens de cores vivas projectadas em ecrã. Muito acontece neste festival que vive este ano a sua segunda edição, mas há coisas que, digamos, acontecem mais – ou acontecem de outra forma: sim, estamos a falar dos imbatíveis Jon Spencer Blues Explosion e dos majestosos Sleep.

Valada, a vila, com os seus cafés e restaurantes que se manterão abertos até madrugada quase dia, está do outro lado da elevação de pedra construída com mão humana. O rio fica ali bem perto, como entrevemos entre a ramagem das árvores, qual orla que separa o Reverence do mundo lá fora. Existe um palco, o Rio, com boa sombra; existe outro, o Praia, em clareira aberta. E existe o palco principal, instalado no campo do Ribatejano Futebol Clube Valadense, que se abre ao final de tarde para actividades, também físicas, mas de natureza substancialmente diferente das do pontapé na bola. Foi precisamente ali que confirmámos.

“Blues Explosion is still number 1”, atira Jon Spencer entre canções. Ou melhor, não o faz propriamente entre canções, fá-lo nas curtas pausas da música que jorrará, imparável, durante uma hora. Spencer, Judah Bauer e Russel Simins fazem isto há mais de 20 anos mas, duas décadas passadas, continuam a ser a mais moderna das bandas rock’n’roll. É certo que o facto de o último álbum, Freedom Tower – No Wave Dance Party, ser uma muito inspirada carta de amor à música da cidade onde nasceram, Nova Iorque, contribui para que isso se torne evidente – foi o disco editado este ano que serviu de base ao alinhamento , mas isso, no contexto de um concerto do trio, é insignificante.

Na verdade, nem interessa saber que canções tocaram, estão a tocar ou vão tocar de seguida. Interessa a forma como fazem do concerto uma celebração efusiva e sempre surpreendente dos sons que lhes preenchem o imaginário. Interessa que sejam uma locomotiva rock’n’roll absurdamente ágil, com os três músicos em palco a mudarem de direcção sem sobressalto, unidos na mesma respiração. Cada canção parece desdobrar-se em quatro ou cinco, passando do blues-rock para rythm’n’blues apunkalhado, de um passo à James Brown para agitação Cramps, daí para balanço hip-hop com riffalhada a marcar o compasso.

Russel Simins, atrás da bateria, é uma máquina rítmica portentosa e de precisão inabalável. Judah Bauer é o discreto mago da guitarra, o homem que dá corpo à matéria sónica criada. Jon Spencer, por sua vez, é o mestre-de-cerimónias de um concerto de James Brown, citemo-lo uma segunda vez, que tomou conta da banda e que se revelou mais incendiário do que se julgava possível. Assim foi em Valada, ora de guitarra em punho, de joelhos no chão e saltos no ar, fazendo zumbir o theremin e mantendo, sempre, a pose de entertainer que leva a sua função muito a sério – a vida dele depende mesmo disto, da passagem de testemunho da música que o antecedeu (venha curta citação a Soul finger, dos Bar-Kays), da homenagem que é torna-la viva, amalgamada, trabalhada como sucessão de samples criados, colados, organizados e reorganizados ao vivo.

Tumulto zen
Já os vimos várias vezes em Portugal, mas o espanto e o entusiasmo renovam-se a cada reencontro: sim, Blues Explosion são “number one” – no ranking do Reverence Valada, porém, não ficaram sozinhos: empate técnico com os conterrâneos Sleep. Depois do frenesim chegou uma pouco budista, tumultuosa, experiência zen.

Tinham passado cinco, seis, dez minutos desde que a canção se iniciara – bateria em passada lenta, o baixo de som cheio a comandar os movimentos, a guitarra desdobrando-se entre os riffs imponentes, demoníacos, legados à humanidade por Tony Iommi e a agitação dos solos que não são verdadeiramente solos, antes chicotadas eléctricas lançadas sobre quem vê.

Al Cisneros, o baixista e vocalista de barba rasputiniana, Matt Pike, o guitarrista de tronco nu que também encontramos nos High On Fire, Jason Roeder, o baterista imperturbável, homem que cumpre a mesma função nos Neurosis. Neste Reverence Valada um pouco mais despido de público do que na edição de estreia, neste festival onde se reúnem a malta do metal à antiga, punks de ontem e de hoje, rock’n’rollers ciosos da sua história, freaks new age apreciadores do bucolismo e de manifestações sociais alternativas, neste festival que celebra o rock como resistência ao mainstream que entorpece, toda essa boa gente (bem como os locais que passeavam pelo recinto para perceber de que é feito o festival da terra) se juntou aos Sleep.

Formados no início dos anos 1990, separados em 1998 e novamente reunidos 11 anos depois, os Sleep impressionam. O negrume dos Black Sabbath e a vertigem decibélica dos Blue Cheer atirados para um mundo de sombras onde o ruído é incessante mas estranhamente terapêutico: podemos ficar, e ficámos, a viajar eternamente naquelas canções, naquele som que nos envolve e agita para logo nos serenar. Os Sleep são viagem a sério. Levámo-los connosco noite fora.

Sábado, no último dia de festival, haverá lugar a muitas outras viagens: pela história dos históricos Amon Düul II; com os Horrors, que vimos, vidrados no palco, a assistirem ao concerto dos Sleep; com Joel Gion e restante malta dos Brian Jonestown Massacre.

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