Livraria Rizzoli regressou a Nova Iorque

Depois da morte declarada em Abril de 2014, a Rizzoli voltou a abrir em Nova Iorque, em Julho, junto ao Madison Square Park. São quase 500 metros quadrados num espaço que a torna uma das maiores livrarias independentes da cidade. “As pessoas continuam a querer ver livros”, diz Marco Ausenda.

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Marco Ausenda é o CEO da nova livraria Rizzoli PCM
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A nova livraria Rizzoli em Nova Iorque

No cimo do terraço com vista sobre a cidade, o italiano Marco Ausenda recua 40 anos. “A primeira vez que estive em Lisboa, foi logo a seguir à revolução. Vim ver a revolução.” Tinha 20 anos. “Vir a Portugal, então, era o mais próximo que se conseguia chegar à União Soviética, o que era importante para quem acreditava que era possível, com ideias como aquelas, conseguir mudar o mundo. Todos os jovens de esquerda da Europa queriam estar aqui. Ver o que era a revolução, seguir as imagens dos cravos enfiados no cano das armas", sorri. “Nunca mais voltei a Lisboa.”

Agora, Marco Ausenda tem 60 anos. Está outra vez em Lisboa e reconhece a cidade dos anos 70. “O miolo está parecido”, acha. Terá uma tarde para caminhar pelo centro, fazer comparações. Não fala de política, mas de livros e de edição. Enquanto conversa, desenha numa folha de papel, e os traços vão ganhando uma forma que ilustra o discurso. “A livraria é assim: à entrada, há uma nave com colunas como numa igreja, depois, uma sala a que foi dado o nome de skylight, e, por fim, um salão criado para projecção de filmes, apresentação de livros, debates, o que se quiser... Há 75 lugares sentados, que podem ser removidos, e o espaço volta à sua função de livraria.”

Num inglês carregado de sotaque italiano, o CEO da Rizzoli descreve aquele que é o centro do universo que o empresário italiano Angelo Rizzoli criou em 1964, quando abriu na 5ª. Avenida, em Nova Iorque, uma livraria que pretendia vender a imprensa internacional e livros de arte europeus. “Ele teve o que se pode chamar de visão, tentando responder à pergunta: 'O que é que eu posso vender nos EUA que outras livrarias não vendam?' Livros europeus e, especificamente, livros italianos. E que livros viajavam melhor da Europa para os EUA? Livros ilustrados, porque se pode prescindir do texto, se ele não for entendido. A imagem é soberana nesses livros. E também jornais e revistas estrangeiros. Na altura, era muito difícil comprar o Le Monde ou o Corriere della Sera em Nova Iorque. Os diplomatas, os expatriados, os turistas representavam um enorme mercado. Foi um sucesso”, conta Marco Ausenda, no que é uma radiografia breve de costumes que foram ultrapassados pelas tecnologias, e que alterou bastante o modo operar.

Angelo Rizzoli, editor e produtor de cinema – entre os filmes que produziu está La Dolce Vitta, de Federico Fellini –, que em 1974 comprou o jornal Corriere della Sera, começou por vender em Nova Iorque livros muito próximos do universo cinematográfico a que estava ligado, e edições sobre artes plásticas, criando uma livraria que queria replicar o estilo das grandes livrarias europeias: tectos altos, amplas estantes em madeira, lustres e “funcionários capazes de tirar qualquer dúvida que estivesse relacionada com os livros”.

Era um “taylor made”, sintetiza Marco Ausenda, um serviço à medida de quem passava a porta do 712 da 5ª. Avenida. A partir dali, a marca abriu espaços com o mesmo conceito em várias cidades dos Estados Unidos, uma expansão que aconteceu sobretudo nos anos 70, dando emprego a estudantes ou recém-formados em universidades de prestígio.

A passagem para o edifício da rua 57 significou uma ampliação de espaço. Três pisos numa townhouse, que até aí fora a montra do famoso fabricante de pianos Sohmer & Co. Foram quase 30 anos, um período em que a Rizzoli sofreu transformações, com os herdeiros do fundador a enfrentarem uma série de acusações de fraude, entre eles o escândalo do Banco Ambrosiano (de que era um dos accionistas o Banco do Vaticano, e que faliu em 1982) e da P2 (uma loja maçónica), ambos com ligação à máfia italiana. A editora e livraria mudaram de mãos. A venda aconteceu em 1983, com a integração no que é hoje o Grupo RCS, o maior grupo de media em Itália.

Agora, 51 anos depois da sua abertura, a livraria muda de casa pela terceira vez. Está no nº. 1133 da Broadway, junto ao edifício Flatiron, três blocos a norte do Madison Square Park, entre as ruas 25 e 26. O edifício térreo do St. James Building vem substituir a segunda, mais longa e emblemática morada da livraria: o edifício da rua 57, onde esteve durante 29 anos, e que foi entretanto demolido para dar lugar a mais uma das torres de habitação de luxo que estão a ser construídas a sul do Central Park.

As muitas petições públicas para salvar o edifício de 1919, de interior barroco, onde a livraria se situava, não surtiram efeito. O barroco não era suficientemente antigo, consideraram os responsáveis pelo património urbanístico da cidade, referindo-se às obras feitas pela Rizzoli em 1985, quando se mudou da 5ª. Avenida. Em Abril de 2014, o contrato de arrendamento terminava e o edifício seria demolido.

A “morte” da Rizzoli era notícia por toda a imprensa. Parecia o fim. Até ao dia 27 de Julho deste ano, data em que a nova Rizzoli reabriu “adaptada às necessidades e exigências do século XXI”, refere Marco Ausenda, acrescentando que essa capacidade de adaptação é fundamental à sobrevivência das actuais livrarias. “Não há como negar que as livrarias sofreram bastante com as vendas on-line. Seja e-books ou livros na Amazon. Muitas vão continuar a fechar, algumas sobreviverão, e outras vão até aparecer, mas terão de ser espaços distintivos, onde as pessoas querem ir. E não é só comprar um livro. É a experiência. Se conseguirmos que venham e sintam essa experiência, algumas acabam por comprar”, diz, ciente de que a livraria que dirige foge aos padrões da livraria convencional.

“Vendemos livros ilustrados. São livros que as pessoas querem ver. É verdade que muitas pessoas entram, olham para o livro e depois compram on-line para poupar dinheiro. Mas as livrarias que irão permanecer são as que trazem diferença. Pode ser para um nicho. Seja uma livraria sobre anarquismo, ou sobre livros ilustrados. Mas terá de ser um sítio apetecível". E cita referências mundiais, não muitas, que equipara com a Rizzoli: a Hatchards, em Londres, ou a Galignani, em Paris. Ou seja, “o modelo tem de mudar, mas as livrarias não vão acabar completamente”.

 

Histórias ilustradas

A conversa decorre durante a visita de Marco Ausenda a Lisboa para apresentar uma parceria entre a livraria Rizzoli de Nova Iorque e o projecto O Apartamento, onde desde 25 de Setembro e até segunda-feira, dia 5, está a funcionar uma loja temporária com livros da chancela Rizzoli. São 26 títulos, com destaque para os dois volumes do catálogo de Tierry Richardson, Portraits of Fashion, numa selecção que reflecte as prioridades de catálogo da chancela: arte, arquitectura, design de interiores, moda, life-style, gastronomia. “Os livros que fazemos e vendemos têm características que os diferenciam, e, talvez por isso, não estejamos a sofrer as mesmas dificuldades de quem vende o livro tradicional em papel”, refere Ausenda, justificando dessa forma aquilo que muita gente consideraria um risco, ou até uma improbabilidade: que a Rizzoli reabrisse depois de deixar o nº. 31 da rua 57.

São quase 500 metros quadrados no centro de Manhattan, que faz da Rizzoli uma das maiores livrarias independentes de Nova Iorque. “As livrarias independentes são as que têm mais possibilidades de sobreviver. Não dependem do volume de vendas, mas da diferenciação. Quem está dependente das vendas irá sofrer muito mais a concorrência com a Amazon”, considera o CEO, que alerta: “Vender livros não é igual a vender outro produto qualquer”. 

Em 2014, a Rizzoli publicou 150 títulos nos Estados Unidos. Em 2015, o número irá repetir-se. “Tem sido essa a média anual”, refere Ausenda, que acrescenta a ligação com a Rizzoli Itália, que edita 40 títulos por ano, dos quais dez são retirados do catálogo norte-americano. Nos Estados Unidos, também outros dez vêm do catálogo italiano. “Temos edição em inglês, italiano, francês e espanhol”, continua, salientando que 95% da edição com a chancela Rizzoli são livros ilustrados, mas com características e em áreas diferentes das de 1964, quando a Rizzoli arrancou em Nova Iorque.

Actualmente com 40 pessoas a trabalhar na edição e 12 na livraria, a loja de Nova Iorque passou a ser, além de um ponto de venda, “um lugar para detectar tendências e reagir a elas”, assegura o seu CEO. “Todas as quarta-feiras de manhã, cerca de trinta rapazes e raparigas juntam-se numa sala a conversar. Conversam sobre tudo, sobre o que quiserem. Com eles, está o nosso responsável editorial que através daquelas conversas consegue perceber interesses. A função dele ali é tomar notas, ter ideias a partir do que ali se fala. Muitos livros nascem assim”, conta Ausenda, referindo ainda que trabalham agora muito próximos da moda “e de tudo o que possa contar uma história, uma história visual”.

Marco dá o exemplo do livro de Manolo Blahník, o famoso designer de sapatos, que a editora acaba de publicar. Chama-se Feeting Gestures and Obsessions e foi escrito e construído por Blahník em parceria com a editora. Ou o livro de Giorgio Armani, escrito e desenhado por ele, com edição Rizzoli e lançado no mercado no final de Setembro, com uma tiragem inicial de 300 mil cópias. “Não serão livros comuns”, concorda Ausenda, “têm características específicas, mas são projectos editoriais e o facto de terem escolhido alguém com um percurso longo nesta área para estar à frente da Rizzoli não é um acaso. Se alguém chegar até mim com um projecto, sou capaz de responder na hora se é viável, se tem interesse ou não. Mas a minha função é também a de procurar vias alternativas à venda tradicional.”

Natural de Milão, onde se formou em administração de empresas, Marco Ausenda fez toda a sua carreira na edição. Primeiro, numa revista de viagens, depois, numa editora que produzia guias de viagens e livros ilustrados, e mais tarde, enquanto director editorial dessa mesma empresa. Em 2002, seria convidado para ficar à frente da Rizzoli New York, a casa que inspira a editora desde que surgiu em 1964.

“Não há sítio melhor para detectar e antecipar tendências como Nova Iorque”, nota este leitor de História, que quando lê ficção procura sobretudo entretenimento em autores como Frederick Forsyth ou John Grisham, mas que não hesita na hora de aconselhar “o” livro: Guerra e Paz. "É o melhor livro a conjugar ficção e não-ficção. É o melhor livro de sempre.” 

As escolhas da Rizzoli vão cada vez mais para áreas ligadas à moda, ao life-style, à fotografia, à gastronomia e também a um regresso: o cinema. A opção por ter uma sala de projecção nas novas instalações marca essa tendência. “Foi uma escolha óbvia”, diz Ausenda, enquanto descreve ao detalhe as transformações feitas pelo arquitecto Thomas A. Klingerman no edifício de finais do século XIX, para onde se mudou agora a Rizzoli.

“Todas as estantes que estavam na anterior livraria foram desmontadas e colocadas neste espaço que está integrado num dos mais estimulantes e movimentados bairros de Manhattan. A cidade mudou e a livraria quer estar adaptada a essa mudança. Os nossos clientes são metade nova-iorquinos e outra metade de outros sítios da América e do estrangeiro, com interesses muito dispersos”, nota, acrescentando o peso que representam para a livraria clientes de países com economias emergentes. “Muitos milionários vão à livraria à procura de ideias para decorar casas, por exemplo. Há quem gaste milhares de dólares em livros nessa área, numa visita à livraria”, nota. 

E entre os visitantes mais excêntricos da livraria estava Hosni Mubarack, o presidente deposto do Egipto. Sempre que ia a Nova Iorque participar em cimeiras da ONU, pedia para ir à Rizzoli. “As portas fechavam durante umas duas horas a outros clientes, ele entrava com a sua comitiva e comprava uns milhares de dólares de livros. Era um ritual.”

 

 

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