O fim do trabalho

A mentira e a denegação são os dois recursos tradicionais do discurso político. Um exemplo de denegação reiterada, visando manter as estruturas de um edifício em ruínas, é a que nos quer manter na convicção de que ainda vivemos numa sociedade de trabalho e de que, portanto, o desemprego é um fenómeno acidental e temporário, continuando o emprego permanente e a tempo pleno a ser a regra, para todos os efeitos, muito especialmente para aquele que tudo salva: o efeito das aparências. O decréscimo da quantidade de trabalho necessário para produzir o mesmo número de mercadorias (materiais e imateriais) que dantes exigiam contingentes enormes de trabalhadores é uma realidade amplamente estudada, que levou alguns sociólogos a falar, desde os anos 80 do século passado, no fim da sociedade do trabalho. Teve alguma repercussão, nesse momento, a discussão em torno do direito a um rendimento garantido, de carácter universal, baseado no princípio que dissocia o direito ao trabalho do direito a uma remuneração. Esse rendimento seria independente do valor do trabalho e não significaria uma espécie de salário social por uma inactividade forçada (que é, no fundo, a lógica do chamado “subsídio de desemprego”). A função essencial do rendimento garantido seria a de distribuir por todos os membros da sociedade a riqueza resultante das forças produtivas da sociedade no seu conjunto. Por outro lado, ele corresponderia a uma declaração de óbito da antiga sociedade do trabalho. Entretanto, onde pára tal discussão? Nesse domínio, só têm acontecido regressões. Como temos visto, esta discussão tem passado completamente ao lado do discurso político e da gestão dos governos, que têm resistido a uma diminuição do horário de trabalho (no caso português, ele até aumentou nos últimos anos) e pouco têm feito para reconhecer as exigências (não coincidentes, em nenhum aspecto, às do antigo trabalho assalariado do proletário) desta nova situação em que a maior parte do trabalho é imaterial e cognitivo. Dosmini-jobs, na Alemanha, aos estágios remunerados, em Portugal, o objectivo é quase o mesmo: apresentar estatísticas que indiquem uma percentagem tolerável, para as necessidades e os ideais de uma sociedade de trabalho, de desempregados. Entretanto, a realidade vai-se alterando e quem esteja atento já percebeu que a divisão dualista que coloca de um lado os empregados (idealmente estáveis e a tempo inteiro, ainda depositários dos valores tradicionais da industrialização) e do outro os desempregados começa a mostrar-se inadequada. Os chamados “indiferentes ao trabalho” e as actividades de autoprodução constituem uma massa em crescimento que fica tendencialmente fora do radar das estatísticas. A descida do valor do trabalho (pelo menos, em Portugal, nos últimos anos) é hoje de tal ordem que já há muita gente que não se deixa convencer por um princípio que se foi impondo progressivamente como mandamento de uma nova condição servil e que diz o seguinte: “Pouco importa o montante do salário desde que tenha emprego”. O resultado da rebelião, como sabemos, é um fortíssimo aumento da emigração qualificada. É verdade que a salários baixos corresponde um fraco pode de compra, e isso é um problema para a racionalidade capitalista. Mas esta é plena da argúcias: o consumo e a produção acabaram por ser assegurados não pela remuneração do trabalho, mas por factores exteriores ao circuito económico clássico. 

Nota: Inteiramente dedicado ao tema do trabalho é o nº 7 da revista Intervalo (co-edição Pianola/Vendaval), editado por André Barata.

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