O elefante escondido da reputação

Nós a vermos o que — pensamos nós — os outros pensam de nós: a partir de uma ideia pragmática de reputação, Gloria Origgi devolve dignidade a esta noção e propõe uma teoria da acção comunicativa para os nossos tempos.

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A tarefa de saber “quem diz o quê sobre quem” passa a ser uma das motivações centrais da vida de cada um em sociedade e, ao mesmo tempo, uma forma colectiva de construção de códigos para a vida em comum FOTO: Manjunath KIRAN / AFP

A reputação é uma ideia que tem, ela própria, má reputação. Tem sido negligenciada pelas ciências sociais, ou por ser vista como vestígio de culturas primitivas e códigos de honra pré-modernos, ou como uma forma de ilusão psicológica, sem real fundamento objectivo. La réputation, o mais recente livro da filósofa italiana Gloria Origgi — investigadora em França, no CNRS — parte desta constatação para, em sentido contrário, devolver dignidade à noção, argumentando tratar-se de um conceito central para se compreender a acção humana neste nosso presente saturado de tecnologia, redes sociais e obsessão por rankings, isto é, classificações aparentemente objectivas mas que se compõem em boa medida de critérios qualitativos e morais que dependem da reputação. Esse é também, claro está, o caso da avaliação quantitativa (em número de estrelas, neste caso) de um livro num jornal, a qual depende intimamente de uma outra avaliação, esta implícita, sobre a reputação dos recenseadores.

Mas vamos por partes. É um livro de epistemologia das ciências sociais, com dez capítulos e perto de 300 páginas, resultado de uma reflexão iniciada em 2007 num círculo de filósofos e sociólogos, sobretudo italianos e franceses. Depois de ter coordenado um primeiro volume colectivo sobre o tema em 2013 (revista Communications, Paris, n.° 93), Origgi publicou há poucos meses esta síntese do seu trabalho, a qual, quero crer, poderá interessar ao leitor português capaz de ler francês e de vencer os efeitos de moda (uma prima da reputação) que nos querem fazer crer que para perceber o mundo em que vivemos nos basta o inglês.

Começando por propor uma definição de reputação, a autora refere-se-lhe como uma imagem social construída a partir do ‘eu’ de cada um de nós, ou, mais exactamente, daquilo que — projectando-se o ‘eu’ numa espécie de espelho desde a pequena infância — imaginamos que os outros pensam de nós. A autora faz assim derivar a importância da reputação de comportamentos cognitivos precoces destinados à auto-identificação e ao controlo do mundo social. Esses comportamentos tornam-se num mecanismo de interiorização permanente de (imagens sobre) imagens sociais. A tarefa de saber “quem diz o quê sobre quem” (subtítulo da obra, mas poderia ser uma forma de definir o Facebook ou o Twitter) passa a ser uma das motivações centrais da vida de cada um em sociedade e, ao mesmo tempo, uma forma colectiva de construção de códigos para a vida em comum. O interesse da reputação não é o de estudar um conceito moral em si, mas o de permitir uma teoria cognitiva da acção que atravessa ciências sociais como a psicologia, a sociologia, a economia, a antropologia e a história.

É a partir deste ângulo que Origgi revisita as teorias mais importantes que têm interpretado o comportamento social, das que se têm ocupado da interacção quotidiana e da acção racional até à sociobiologia, recorrendo também a diversos exemplos da literatura e do cinema como “reportório inesgotável de situações contrafactuais” (é o caso do romance Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, que funciona como epígrafe de boa parte do livro). As discussões clássicas sobre o que move a acção humana — estratégia, racionalidade, interesse — são enriquecidas aqui à luz da importância atribuída por cada um de nós à reputação, entendida como fim em si mesmo, mais forte do que outros benefícios imediatos: “passamos a vida a construir uma imagem de nós próprios a que gostaríamos de nos conformar. Este eu ideal é a nossa obra mais minuciosa, difícil de realizar, obra-prima sempre inacabada.” (pag. 50).

É particulamente interessante o terceiro capítulo, sobre o papel racional, pragmático, do gossip, a bisbilhotice, esse interminável rumor social que permite avaliar constantemente, e de maneira informal, a reputação alheia, indissociável da nossa. Dele começa a extrair-se uma ideia central do livro: a reputação é uma opinião de segunda ordem; é uma opinião construída sobre as opiniões dos outros, que depende do peso que damos a essas opiniões. Corolário desta ideia é a inversão do axioma segundo o qual conhecemos o mundo para o avaliar. Segundo Origgi, é o inverso que é verdadeiro: avaliamos o mundo para o conhecer. É a partir de uma avaliação prévia da mensagem, do canal, do emissor, que processamos a informação. E é por isso que é tão importante fazer uma análise aprofundada dos diferentes mecanismos sociais da reputação, desde a que é construída informalmente pela interacção quotidiana à que se formaliza em sistemas baseados no peso da autoridade, como a reputação académica, a do gosto artístico ou a das agências de rating. Trata-se, nos capítulos mais densos do livro, de proceder a uma verdadeira heurística da reputação, da forma como se constroem hierarquias destinadas a transmitir (ou retirar) confiança e credibilidade às opiniões, aos sistemas, instituições, bens ou Estados.

O texto fecha com três estudos de caso de sistemas de criação de reputação: a World Wide Web, o vinho (estudado por ser um caso singular, em que a entrada nos códigos de atribuição de reputação se faz já na idade adulta e sem grandes pontos de referência prévios), e a academia. O caso da Web — foi pelo seu estudo que a autora chegou à questão da reputação —, mostra, por um lado, o colossal desenvolvimento de novas formas de inteligência colectiva através de construções algorítmicas (do tipo PageRank, Wikipédia ou Tripadvisor) e, por outro, a forte dependência de toda essa ecologia da informação de novas hierarquias da reputação, aliás em constante evolução. São também muito estimulantes as páginas sobre as radicais mudanças induzidas ao sistema da reputação académica pela nova economia mundial de produção do saber. Origgi define o sistema actual — baseado nessa espécie de moeda única que é o artigo em peer-review — como uma “servidão epistémica voluntária”, e aponta várias pistas para se perceber como os universitários se deixaram arrastar até ela.

Saliente-se que a perspectiva crítica presente neste livro não é sinónimo de pessimismo nem se baseia numa charge contra as classificações ou os rankings. Origgi avança fórmulas como a de “homem comparativo” e considera que a comparação e a construção de valor são inerentes à vida humana em qualquer época. Sem avaliar e estabelecer hierarquias, estaríamos como Bouvard e Pécuchet, os dois heróis de Flaubert que, tendo-se retirado do mundo para se porem a saber tudo, acabam por não conseguir conhecer nada.

No entanto, defende, a obsessão de classificar, comparar e atribuir valor em todos os domínios acaba por depreciar o valor intrínseco das coisas. Contra isto, a autora defende uma “responsabilidade epistémica”, uma tomada de consciência constante dos enviezamentos produzidos pelos sistemas de reputação. Adaptando uma célebre fórmula de Karl Marx, poderíamos dizer que durante muito tempo a filosofia preocupou-se com o conhecimento directo do mundo. Origgi ajuda-nos a desbravar o caminho para um, também indispensável, conhecimento indirecto desse mundo. Glória para ela.

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