O Douro

O Douro é uma região com um vocabulário próprio, antigo e moderno — para o Verão e para todas as estações.

Para falar agora do Douro bastaria citar a poesia de A. M. Pires Cabral. Em toda ela, em cada um dos seus poemas, ele está lá, o Douro, e com ele todo o universo, a vida e os mistérios que vão para além dela. Por isso, para falar agora do Douro o ímpeto seria transcrevermos todos esses versos, que pertencem a essa terra, e com eles transcrever os seus habitantes, o rio, o céu nocturno estrelado, as geadas matinais. Face a essa impossibilidade, fiquemo-nos por um dos poemas, Amoras segundo S. Francisco:

“Como as inquietas aves ribeirinhas,
Também nós fazemos em Agosto
A nossa safra de amoras,
Evitando com prudência os picos
Que as dificultam e tornam cobiçadas.

Bendita sejas, irmã silva, que nos dás
As amoras e os picos.

Que de tudo se precisa nesta vida.
(Na outra, por enquanto não se sabe)” 

(in Gaveta do Fundo, p. 30.)

O Douro tem um vocabulário próprio, antigo e moderno. É bom coleccioná-lo: granito, medas, comboio, cestaria, lagares de azeite, moinhos de farinha, giestas amarelas, ermidas, cascalho, trouxa, turismo de vinhas, silva, figos, opas vermelhas, Senhora da Assumpção, escarpas, tristeza, Agustina, hotéis de luxo, enxergas, lareira, rosário, chila, uvas de todas as cores e todos os sabores, pinheiros, emigrantes, ferroviários, modistas, motas de água, praias fluviais, dióspiros, sinos, velhos, canaviais, fundos europeus, motéis brasileiros, carreiras, luzes-cus ou pirilampos, escarpas, castanhas nas suas carcaças com picos, Sport TV nos cafés, factor, chefe de estação, altifalantes no máximo do volume, café Benguela, barqueiro, pré-história, cerejas de Resende, rebuçados da Régua, foguetes, mosto, missa do galo, cultivo de kiwis, rosas japonesas…

Terra antiga, o Douro traz o tempo em que o Inverno era o da comichão causada pelas frieiras nos dedos, o banho era ao domingo na bacia de latão, as sardinhas vinham salgadas, a enxerga era de palha, os pobres andavam descalços e os remediados calçavam socas e viajavam para o Porto no recoveiro já em 2ª classe, em que se ia doente para o Caramulo e se emigrava para o Brasil, a França, a Suíça. Chegava a Primavera e já cheirava ao frio da água das minas, e os lençóis coravam sobre as ervas. Rodas de moças aprendiam costura para depois, chegada a altura, se deslocarem ao Porto e comprar o tecido na Casa das Noivas. 

Agora os sofás de sala das famílias da Régua e de S. João da Pesqueira são da Ikea, a empregada de caixa do supermercado exibe no ombro um escorpião vermelho tatuado, os emigrantes colocam os seus nomes próprios em tubos de néon sobre as portas — Manuel e Véronique —, o Presidente da Junta veste calções de ganga e usa um boné Nike quando vai às assembleias. 

As margens do rio e os casarios são cenários de filmes românticos com belas actrizes e homens de bigodes fartos a que assistem rapazes musculados e raparigas de jeanscom o telemóvel guardado no bolso traseiro. 

Foto
Paulo Pimenta

Dantes, nas missas do galo, enquanto os pais e os avós festejavam o Natal, os rapazes e as raparigas faziam os seus jogos sexuais em grupo, entre os colchões e debaixo das pesadas mantas de Inverno. Agora, as ceias são mais fartas e os iPads e os SMS tomam conta das noites de Natal; e, felizmente, pode haver aquecimento central nas casas mais prósperas. 

Quanto ao rio, só os mais velhos se recordam do medo que havia das almas penadas que à noite visitavam os mais novos que dormiam nos barcos rabelos ancorados sob as estrelas — que davam a única luz que os iluminava. 

Também nunca ninguém conta, nos programas da manhã das televisões — os que acompanham a agonia das aldeias —, a história da corrida dos três rios. Os três rios — o Douro, o Tejo e o Guadiana — puseram-se, em Espanha, a discutir qual deles chegaria primeiro ao mar, e tanto discutiram que combinaram fazer uma corrida no dia seguinte. O Guadiana e o Tejo levantaram-se muito cedo e puseram-se a caminho, descendo por aí abaixo. Calmo e sem conhecer grandes obstáculos, o Guadiana chegou ao mar dirigindo-se para Sul. O Tejo começou a correr, mas como quando chegou à fronteira viu que a corrida estava ganha pelo Guadiana, decidiu pôr-se a vaguear a partir daí e até Lisboa. Já o Douro deixou-se dormir até mais tarde. Quando acordou, alvoroçou-se e desatou a correr por muros, encostas e rochas na tentativa de ainda apanhar os parceiros. Frenético e rebelde, por causa disso chegou torto e espavorido ao mar. 

Isto passou-se, claro, antes da construção das barragens e antes dos cruzeiros falados em várias línguas que, dizem, dão emprego no Verão. Até as vindimas são agora boas para os turistas experimentarem, e até já se pode chegar de helicóptero ao Pinhão.

Ao Douro chegou Agosto e com ele as tardes talhadas por palavras, lembrando as palavras de William Carlos Williams, que não era do Douro mas sabia de outras coisas:

“Amarelo, amarelo, amarelo, amarelo, amarelo!
Não é uma cor.
É o Verão.”

Sugerir correcção
Comentar