FKA Twigs é o doce choque do futuro

É um dos acontecimentos musicais de 2014: LP1, de FKA Twigs, impõe uma pop futurista em câmara lenta e um imaginário visual singular, em cima de uma voz que faz suspender os sentidos. Em entrevista ao Ípsilon, a britânica diz que ao fim do mês ainda pede ajuda aos familiares para pagar as contas. Mas não custa acreditar que isso vai mudar rapidamente.

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É franzina, de olhos grandes, e a voz é fininha ao telefone. Fala rápido. Por vezes é quase imperceptível o que diz. Confessa-se obcecada pelo trabalho. Parece saber o que quer e como chegar lá. Aos 26 anos, e com o excepcional álbum de estreia, LP1, a ser lançado em todo o mundo na terça-feira, a inglesa FKA Twigs é a cantora de que se fala.

Quando lho recordamos, ri-se, notando que apesar do falatório à sua volta ainda tem dificuldade em pagar as contas lá de casa ao fim do mês. “Queria estar numa posição que me permitisse ajudar alguns dos meus familiares, mas são eles que me ajudam”, diz.

É uma questão de tempo. Até agora, Tahliah Barnett (é o seu verdadeiro nome) tem investido: dinheiro, tempo e trabalho. No ano passado já teve retorno, com dois EP, uma série de vídeos e os concertos a darem-lhe alguma projecção. Mas é agora que o grande público vai conhecê-la.

A sua música futurista não é fácil. Electrónica retorcida, ritmos inesperados em câmara lenta, muito espaço, com silêncios, ambientes etéreos, orquestrações, linhas de baixo subaquáticas e depois aquela voz que parece suspender os sentidos. Existe qualquer coisa de humanamente vulnerável e de força sensual alienígena na sua música.

Podemos imaginar cenários a partir do que fariam os Portishead com D’ Angelo, ou James Blake com Aaliyah, ou os The xx com Kate Bush, ou os Massive Attack com Sade ou The Weeknd com Björk – e mesmo assim não chegaríamos lá. Dizer que a sua música é R&B também é redutor. E colá-la a cantoras contemporâneas, de Kelela a Azealia Banks, não faz grande sentido. Ela é simultaneamente mais singular e mais universal, desafiando comparações. Em termos musicais e visuais, não há ninguém como FKA Twigs.

Dificilmente LP1 galgará pelos topes de vendas por esse mundo fora. Mas será quase inevitável falar dela quando se fizerem os habituais balanços musicais do ano corrente. Não tem muito que enganar, parecendo seguro que de cantora de culto passará para um outro patamar nos próximos meses, sem dificuldade. Canta, produz, compõe, dança, teatraliza, imagina imagens e realiza ou co-realiza os videoclipes. É alguém que se pensa como um todo, uma persona, um conceito, uma artista total. FKA Twigs é sem dúvida um dos acontecimentos de 2014.

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Por enquanto, parece ainda pouco consciente desse facto e prefere vincar que está concentrada no trabalho. “Tudo o que foge da órbita do estúdio, da criação ou dos concertos é algo que vislumbro de forma distante. As entrevistas, os ecos da imprensa, as reacções que vou despertando interessam-me, mas por vezes sinto que me afastam da criação, que é a minha principal motivação. Não gosto de pensar que tudo isso me pode sugar a energia. Talvez por isso, isolo-me muito.”

Tahliah Barnett cresceu no Gloucestershire, pés na Inglaterra rural, entre vacas, sebes, vales e campos verdes a perder de vista. É filha de mãe inglesa de origem espanhola e de pai jamaicano, com quem privou apenas espaçadamente ao longo dos anos. Na escola, “também já não tinha muitos amigos”, afirma, reforçando que será uma solitária. Define-se também como tímida. Alguém que está sempre no seu canto.

“Apesar de ter vindo a perceber que isso também pode assustar os outros”, diz-nos, ao mesmo tempo que se ri da sua observação. Perguntamos porquê é que pensa dessa forma e, depois de algum tempo de silêncio, responde: “Porque acabam por te achar misteriosa, o que pode fazer com que as pessoas façam projecções para cima de ti.”

Na Internet, de facto, todos têm uma opinião sobre ela. Até agora, largamente positiva. Mas como acontece sempre nestes casos de grande visibilidade, os detractores também surgirão. Seja como for, o passa-palavra da Internet desempenhou um papel importante na sua afirmação global, mas ela está longe de ser uma adepta do universo digital, não fazendo ideia, por exemplo, do número de visualizações dos seus vídeos virais no YouTube. “Sei que a Internet é muito importante hoje, claro, mas não me interesso muito, talvez porque exista muito ruído à volta, em todos os sentidos, e eu prefira tranquilidade.” O Facebook ou o Twitter também não lhe dizem grande coisa, mas há uma rede social que frequenta, o Instagram, "porque aí é a imagem que comunica”.

Mas, então, o que faz quando não está em estúdio? “Bem, isso vai sendo cada vez mais raro”, responde, “porque sou muito obsessiva e desejo saber tudo sobre os aspectos criativos.” Mas a sua vida não é apenas música, concede: “Estou com amigos em casa. Não sou muito de sair ou de ir a concertos, por exemplo. Mas gosto de ouvir música em casa com outras pessoas. E acima de tudo, durante a semana, continuo a ter aulas de dança.”

A dança é uma paixão de sempre. Na infância e adolescência, em casa, a mãe, uma antiga professora de dança, cantava com ela ao som de temas de Billie Holiday, Marvin Gaye ou Ella Fitzgerald. Influenciada pela progenitora, desde muito cedo Tahliah se interessou pelas artes do corpo, acabando por rumar definitivamente até Londres aos 17 anos, para estudar diversos estilos de dança – do ballet clássico ao hip-hop.

Em paralelo à dança, foi surgindo a música. Desde os 16 anos que cantava, mas nada de muito assumido. No final de 2012 começou a dar nas vistas. Foi então que assinou pela britânica Young Turks, a subsidiária de prestígio da XL Recordings, (para a qual gravam também nomes como os The xx ou SBTRKT), onde lançou dois magníficos EP de quatro temas cada (EP1 e EP2). O emergente produtor Arca, de origem venezuelana que acabou por tornar-se conhecido depois de participar no álbum Yeezus, de Kanye West , coproduziu com ela o EP2.

Mas mais até do que as canções, foram os videoclipes que acabaram por criar um efeito de contágio junto do público mais atento às novidades da música. As incríveis imagens digitalizadas de Water me, uma criação conjunta com o artista Jesse Kanda, ou a narrativa surreal do tema em parceria com a dupla Inc., inspirada, segundo ela, no filme Os Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci, constituem dois desses exemplos. Para ela tudo faz parte do mesmo universo criativo: “As canções, os vídeos, os concertos, enfim, até a roupa que visto, acabam por fazer parte do mesmo corpo de trabalho”, afirma. “Faço questão de investir toda a minha energia em tudo o que faço, seja lá o que for.”
 
Viragem
Hoje parece claro que essas horas de trabalho não foram em vão. Existe nitidamente um universo FKA Twigs. “Passei muitos anos à procura da minha identidade artística, umas vezes sozinha, outras colaborando com outras pessoas, e agora sinto que cheguei a algum lado. A forma como escrevo neste álbum e a sonoridade das canções não foram fruto do trabalho de apenas alguns meses, mas sim de muitos anos de procura.”

Cantar e dançar para ganhar a vida fazem parte da sua rotina há muito tempo. Há alguns anos era possível vê-la a dançar, como bailarina profissional, em vídeos de Kylie Minogue ou Jessie J, ou até no circuito londrino dos cabarés. Na actualidade, quando olha para o passado recente, não tem dúvidas em dizer que foi um período crucial para aquilo que é hoje. “Para se chegar a algum lado é preciso insistir, falhar por vezes, e tentar retirar o melhor dessas experiências. Nessa fase da minha vida aprendi imenso – a estar em palco, a tentar ter o controlo sobre o público à minha frente, a colaborar com outros, ou a vislumbrar o trabalho de bastidores, nas luzes ou no som. E a encarnar personagens, a deixar de ser eu, sem nunca deixar de o ser.”

E agora aí está o álbum de estreia, um disco em que volta a colaborar com alguns cúmplices, como já acontecia nos EP e nos vídeos, mas sempre em regime de coautoria. Percebe-se que deseja manter o controlo artístico sobre todos os processos em que se envolve e está cada vez mais interessada em trabalhar sozinha. Desde que começou, já recorreu aos serviços de alguns dos mais criativos produtores do momento (Haynie, Arca, Clams Casino, Dev Hynes ou Paul Epworth), mas a sua assinatura sonora mantém-se inalterável, sintoma de que sabe bem o que quer de cada um deles. Independentemente dos nomes que convoca para estúdio, prevalece sempre o seu ideário. A palavra final é sempre dela.

“Colaborar com alguém pode ser interessante se as duas pessoas forem capazes de se estimular mutuamente, acabando por alcançar zonas que de outra forma nunca seriam capazes de atingir”, reflecte. “Neste álbum compus todos os temas e produzi algumas canções sozinha”, explica, embora também existam colaborações em regime de coautoria. “Há canções em que colaboro e noutras estou sozinha. É por aí que me apetece ir, cada vez mais. Às vezes tenho de explicar de forma tão minuciosa o que quero que acabo por chegar à conclusão de que mais vale ser eu a fazê-lo.”

Quando lhe perguntamos como comunica com outros músicos ou produtores acerca da sua música, irrompe em risos. “É uma mistura de detalhes técnicos sonoros, de frequências, de programações, de graves e de botões, com imagens de vulcões, de espaço, de água transbordante, de cores fortes, de céu carregado ou de carros que chocam entre si e coisas desse género. É qualquer coisa que mistura a técnica e muitas imagens da minha mente. E nos vídeos acontece também o mesmo.”

Já as letras das canções falam de desejo, luxúria e obsessão. De lutas de poder no espaço das relações amorosas. Da linha por vezes ténue que separa submissão de dominação, ou o prazer da dor. Tudo isto sustentado por uma sensualidade melancólica, que ela prefere não esmiuçar muito, dizendo que se entrasse em detalhes iria encerrar a possibilidade de cada um ter a sua própria interpretação. “Escrevi dezenas de canções para o álbum, é algo que gosto de fazer, e as escolhas nem sempre recaíram na sensualidade”, limita-se a dizer, como se não quisesse ficar fechada em qualquer prateleira mais óbvia.

Não tem nada a temer. Os vídeos transmitem uma imaginário quase irreal. Como se ela fosse uma personagem de BD. Mas nos concertos percebe-se que é bem real. Alguém capaz de se expor à flor da pele. Aliás, nos próximos tempos o seu grande desafio serão os espectáculos ao vivo, em que revelará as canções do álbum de estreia. Dir-se-ia à primeira vista que a complexidade e o intimismo da sua música têm poucas possibilidades de se exprimir de uma forma convincente em palco.

Mas não é assim. A sua voz enche o espaço. Os seus movimentos são lânguidos. E sabe comunicar com o público. Fá-lo pouco, mas sempre a propósito. E depois existe o som. Uma guitarra que só se insinua de vez em quando, uma percussão minimalista constante e sintetizadores que impõem um clima luxuriante. Há quase sempre uma suspensão próxima do silêncio e momentos de pausa, num espectáculo sem grande rede, onde a sua voz está desprotegida e não pode nunca vacilar.

A audiência pode dançar, se estiver para aí virada, mas a música de Twigs é mais introspectiva do que extrovertida. Não existem grandes pirotecnias. E a música não é propriamente articulada, procurando ângulos inusitados.

Dir-se-ia serem canções para ouvir solitariamente e não tanto para desfrutar em colectivo. Mas Twigs aponta que as duas soluções podem complementar-se. “Algumas canções entram em territórios negros e exigem concentração para serem desfrutadas, mas ao vivo creio que a maior parte delas ganha uma sonoridade mais solta.” É verdade. Mas a contenção e a fluidez serena dos seus movimentos marcam os concertos.

Os próximos tempos vão ser determinantes para ela. Por enquanto a mãe e o padrasto têm dificuldade em perceber como é que alguém que está em todas as revistas e cujos vídeos têm milhões de visualizações ainda há pouco tempo lhes pedia dinheiro emprestado. A verdade é que os tempos são outros. A indústria da música mudou. E como fazer dinheiro com a música é hoje em dia uma equação com imensas variáveis, nenhuma delas certeira. Mas ela não está preocupada: “Claro que desejo continuar a fazer música e para isso é necessário pagar as contas, mas poder partilhar ideias já é qualquer coisa de fantástico.”

É certo que FKA Twigs nunca será uma Beyoncé. Mas não custa perceber que o momento de viragem para ela chegou. A cantora de culto do YouTube vai mesmo dar o salto para o infinito e não será nos próximos meses que vai conseguir parar para descansar. “Não tenho férias há anos e anos e não vai ser ainda desta vez, porque vou entrar agora em digressão”, diz-nos entre o resignado e o divertido.

“Mas tenho quase a certeza de que todo este esforço vai valer a pena e um dia haverei de conhecer as praias portuguesas.” Alguém duvida? 

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