O direito de ser atropelado

Ao contrário do que diz, a escrita é um repositório de enxames de significações ancoradas em redes etimológicas e um tesouro da memória. Na medida do possível, a ortografia deveria evitar o seu apagamento.

No passado dia 14 de Abril realizou-se na Faculdade de Letras da UL um Fórum Pela Língua Portuguesa, diga NÃO ao “Acordo Ortográfico” de 1990, cujo cartaz suscitou reacções sensíveis por parte do “Ciberdúvidas”.

Além de apontar para um erro ortográfico, a saber, a falta de um hífen e de um ponto em 3ªfeira – o que, no meio do caos generalizado e serenamente ignorado, soa a lágrimas de crocodilo –, remeteu o leitor para a reacção do historiador Paulo Pinto publicada no blogue “Jugular”, e ainda para um artigo do mesmo autor publicado em 2013 no nº 177 da Revista Brotéria.

Fui ler. Quanto ao primeiro texto, o historiador converteu-se em director de consciência dos autores do cartaz e promotores do Fórum, acusando-os de enxovalhar a inocência do AO90. Ora, nós sabemos bem que só depois da aplicação experimental do AO90 estes erros monstruosos – “pato de regime”, “abruto”, “apocalise”, “pseudo-inteletual”, “fatos ocorridos”, “deixe o seu contato”, etc. – começaram a surgir nos documentos oficiosos e institucionais, bem como nos meios de comunicação. A lista é devastadora. Há quem a tenha actualizado: Fernando Venâncio, “O ACORDISMO EM NEGAÇÃO”, por exemplo. Só não vê quem não quer. É o caso do “Ciberdúvidas” e do historiador Paulo Pinto, que passam por tais provas incontestáveis como cães por vinha vindimada.

Atenhamo-nos agora ao artigo de 2013, que traz o pomposo título: “Os cinco pecados mortais anti-acordo ortográfico (servidos em bandeja de História)”. Quais são eles? 1. estreiteza de vistas; 2. ignorância; 3. arrogância; 4. preguiça; 5. reaccionarismo. O parêntesis (“servidos em bandeja de História”) apresenta-se como um certificado de qualidade, que as pinceladas vagas do prólogo e do epílogo escassamente cumprem. Embora houvesse muito a dizer sobre a redução da língua a instrumento dos Impérios, em tradução mais recente, “política da língua”.

Porém, quando se chega ao busílis da questão, a saber, os tais “cinco pecados mortais do anti-acordo ortográfico”, não se consegue vislumbrar aquilo que seria de exigir a um verdadeiro historiador: probidade, isto é, recolha e análise minuciosa dos documentos disponíveis e a sua fundamentada selecção e classificação.

Os argumentos são de duas ordens: estatísticos e psicológico-antropológicos.

Opõem-se os 10 milhões de falantes do português de Portugal aos 176 milhões de falantes do português do Brasil. Omitindo sempre que no Brasil a discussão sobre o AO90 é muito acesa, não só por parte de discordantes de referência, como é o caso do professor universitário e editor Paulo Franchetti, mas também de quem considera que ele não satisfaz ainda os desideratos de simplificação ortográfica, em que tanto se empenham o linguista Ernani Pimentel e o Senado brasileiro, tendo em vista vencer o preocupante índice de analfabetismo. Para o jornalista de referência Roberto Pompeu de Toledo, esta simplificação beneficiará mais as estatísticas da inclusão social do que os interesses daqueles que não sabem ler nem escrever (para não falar daqueles que sabem ler e escrever).

A África é mencionada indistintamente e não tem relevância visível, o que é simbolicamente estranho se não fosse gravoso da realidade. Do “mundo lusófono” – conceito tão problemático que deveria ser ou evitado ou esclarecido – são excluídos Angola e Moçambique, et pour cause, isto é, estes países não assinaram o AO90 e, portanto, desapareceram do mapa da África deste historiador. Trata-se de uma omissão que serve as motivações do acusador, mas deixa mal a história.

Aliás, ele apresenta-se como leigo na matéria, o que lhe fica muito bem, apenas é inadmissível que as obrigações do historiador tivessem sido mandadas às urtigas. Na verdade, temos diante de nós um conjunto de impressões psicológicas provocadas pela irritação de quem consulta regularmente as redes sociais. Sugerem-se outras fontes.

Não é citado um único documento contra o AO90 – nalguns casos, livros – redigido por linguistas, professores de literatura, escritores, tradutores, jornalistas, de craveira intelectual indiscutível, pessoas que não são leigos, que sabem do que estão a falar.

Quer dizer, o historiador Paulo Pinto selecciona ardilosamente argumentos menores ou eivados de um nacionalismo simplista, propiciado pela paixão de outros leigos, neste caso, contra o AO90. Observa-se uma ignorância voluntária, um esquecimento premeditado de tudo o que não caiba nessa forma tacanha de nacionalismo, do qual o autor faz o nervo das suas acusações condenatórias, o que é uma forma leviana e aviltante de antropologia caseira.

Deste modo de ser português estão a salvo – ó maravilha das maravilhas! – os promotores do AO90, os deputados que o votaram, os governantes que o assinaram de bandeja (deixo a determinação à escolha de cada um) e aqueles que, mais papistas que o Papa, se entregaram levianamente às operações de “aparar” e “corrigir” (os termos são do autor) cês e pês a torto e a direito. É o direito de ser atropelado. Passo a explicar-me. Há uns bons anos, vi um homem já de idade atravessar, com o sinal dos peões vermelho, um cruzamento particularmente perigoso. Escapou por um triz. Preocupada, dirigi-me a ele: “- Por favor, tenha mais cuidado a atravessar a rua. Podia ter sido atropelado!” Ao que ele, furioso com a minha observação, exclamou: “- E eu não tenho o direito de ser atropelado?!”

Não será difícil concluir quanto a estreiteza de vistas, a ignorância, a arrogância e a preguiça (deixemos o reaccionarismo, que é pau para toda a obra) ajudaram o autor de “Os cinco pecados mortais anti-acordo ortográfico (servidos em bandeja de História)” a redigir o seu texto. E já agora, que ele aceite o conselho de procurar o video da linguista Gina Cooke, “Why is there a b in doubt?”, que o ajudará a repensar o modo ingénuo e instrumental como concebe as relações entre fala e escrita. Ao contrário do que diz, a escrita é um repositório de enxames de significações ancoradas em redes etimológicas e um tesouro da memória. Na medida do possível, a ortografia deveria evitar o seu apagamento.

Um erro difundido e multiplicado não deixa de o ser: com o Acordo Ortográfico de 90 (que com o nome nos engana) abriu-se uma caixa de Pandora, e o caos ortográfico está instalado. Os responsáveis assobiam para o lado.

Filósofa e ensaísta

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