O corpo atrás da oliveira

Em Archives, o coreógrafo israelita Arkadi Zaides olha de frente para os palestinianos mas pergunta aos da sua comunidade porque os atacam.

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Arkadi Zaides mudou a data de regresso a casa. Aquilo que tem que mais se aproxima de casa, Tel Aviv. Neste momento a última coisa que quer é regressar a Israel.

Neste momento a sua casa é ainda o momento imediatamente anterior às palavras que abrem Archives, ovni político numa programação asséptica: “Sou israelita e vivo em Tel-Aviv A Cisjordânia fica a 20 quilómetros. As imagens que vão ver são imagens de israelitas filmadas por palestinianos”.

O que se segue é de uma violência incómoda. E a exposição do coreógrafo e intérprete a essa violência, na repetição dos gestos que vemos nos vídeos, assusta. Já não se consegue ver Archives sem pensar na guerra que voltou a rebentar entre israelitas e palestinianos. É por isso que Arkadi Zaides não quer voltar a casa. Já não sabe onde fica a casa que lhe disseram ser sua quando aos 11 anos os pais fugiram da Bielorússia. Eram judeus, perguntamos. “Eram comunistas”, responde. Estávamos em 1989.

Estamos em 2014. A ficção que pode fingir na criação de movimentos a partir da raiva dos que atiram pedras, dos que lançam granadas de gás lacrimogénio, dos que manejam metralhadoras e apontam para trás das oliveiras, tornou-se no que de mais próximo tem para tentar compreender as divisões que, há anos, se tornaram no seu dia-a-dia. Por agora não quer mais.

Perguntamos-lhe se tem medo. Perguntamos porque ainda não se foi embora. Perguntamos se há algum lugar onde a sua dança possa deixar de ser política. A tudo diz que não. “As coisas funcionam assim. Às vezes é mais violento, depois acalma, depois volta tudo atrás”.

Arkadi Zaides, 34 anos, quer compreender. Archives é, no seu percurso (que em 2010 passou por Lisboa com Solo Siento, apresentado no Festival Temps d’Images/Centro Cultural de Belém), um modo de questionar a distância que a mediatização dos conflitos também cria. É um modo de olhar para dentro dos olhos dos que continuam a fazer a guerra independentemente do cessar-fogo.

“Muitas vezes escolhemos não saber o que se passa do outro lado do muro. Muitos dizem que ‘aqueles não somos nós’. Mas ‘aqueles’ são uma parte essencial deste ‘nós’”. Há seis meses, numa etapa de trabalho, ainda em Paris, Arkadi dizia ainda: “A Cisjordânica fica a 20 quilómetros. Eu nunca fui à Cisjordânia”. Depois foi e a frase deixou de fazer sentido. Mas ainda não é capaz de dizer que visitou o outro lado do muro: “Ainda não sei o que dizer”.

Os olhos de Arkadi são vivos e expressivos, excepto quando se abandonam ao silêncio de não poder responder às dúvidas que o seu trabalho suscita e inquieta. Às vezes olha-nos como se buscasse nas nossas perguntas as mesmas respostas. Às vezes diz: “Não se pode fazer outro trabalho se não perguntar e querer saber. Talvez isso seja político. Há outra forma de não o ser?”.

Archives, apresentado fora das muralhas de Avignon, é um gesto de resistência contra a facilidade que existe em se tomarem posições num conflito que ninguém sabe como parar. O lugar onde se coloca – imediatamente em frente aos vídeos, repetindo-os – “é o de um observador com consciência da sua responsabilidade e do seu posicionamento relativamente à situação, integrando, aos poucos, no corpo as informações vistas ou intuídas na imagem.”

As imagens, recolhidas do arquivo criado pela organização não-governamental B’Tselem, criada por israelitas mas gerida também por palestinianos, mostram os conflitos entre os dois lados da mesma guerra pelos olhos de quem a vive e sem os filtros do jornalismo. São registos que, muitas vezes, acabam por servir como prova judicial e que têm, nos últimos anos, sensibilizado um e outro lado para a necessidade de se encontrarem outras formas de diálogo. Foi deste arquivo, por exemplo, que saíram muitas das imagens complementares do filme Cinco Câmaras Partidas, de Emad Burnat e Guy David, filme que o coreógrafo escolheu para apresentar em ciclo paralelo à programação do Festival de Avignon.




Diz ele, que às vezes se sente sozinho: “Ofereço o meu corpo e a minha fisicalidade a este material. Mas que preço carrega o nosso corpo? O meu ponto de vista, específico e perturbador, não deixa de me implicar apenas a mim, mesmo que eu fale de outros. Empresto-me do olhar dos palestinianos para falar da minha própria comunidade”. E então acrescenta que “não é fácil habitar um conflito”.

As implicações no corpo são muitas, diz o coreógrafo sobre um movimento que se constitui a partir de uma raiva que, muitas vezes, é difícil de explicar, sobretudo quando nas imagens vemos crianças e adolescentes que não sabem, nem nunca viram, o rosto de outras crianças e outros adolescentes que também lhes atiram pedras.

A violência auto-infligida, mesmo que seja criada apenas por uma aproximação ao corpo virtual que nunca quer ser materialização concreta do gesto, não é apenas estética. A retirada de contexto dos vídeos não lhes diminui o significado. Do mesmo modo, a composição musical a partir da manipulação do som das pedras a bater nas chapas de zinco, das balas a perfurarem as pedras, das oliveiras a serem queimadas, dos gritos de quem atira e dos gritos de quem é atingido, o balir das ovelhas e os insultos dos militares, torna-se numa construção que não é senão a impossibilidade de distinguir – e de discutir – a realidade da ficção.

“O que esta coreografia oferece é, na verdade, a possibilidade de percebermos que existem diferentes periferias dentro de um conflito que se tornou o quotidiano de duas faces da mesma realidade". Pragmaticamente desiludido, Arkadi não acredita que seja possível que, algum dia, as coisas mudem: “Era preciso uma enorme dose de inocência para acreditar que algo pode mudar”. Falamos sempre para lá da coreografia porque “não é possível criar um objecto que seja apenas artístico”. “É por isso que digo que perdi a inocência.” Às vezes a pergunta a fazer é, tão simplesmente, esta: quem é o nosso vizinho?”.

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