O comboio de palavras de Novarina tem horror ao vazio

Até 30 de Julho, o Teatro da Politécnica recebe A Inquietude, de Valère Novarina, uma peça de fundo autobiográfico em que o actor deve dançar com as palavras.

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Valère Novarina tem uma forma peculiar de escrever. Rabisca umas frases, depois outras, e vai colando todas numa parede de sua casa até ao momento em que, olhando-as a todas, começa a compor o texto final como se de um puzzle se tratasse. A Inquietude, texto que Novarina estreou em 1993 no Festival d’Avignon, soa a comboio de palavras posto em andamento e em que as imagens se atropelam num total desrespeito por qualquer lógica narrativa. Ouve-se o monólogo interpretado por Eduardo Breda, sob a direcção de Francis Seleck, como se nos fosse estendida uma passadeira para dentro da cabeça do autor, escutando a sequência de pensamentos sem ordem particular, numa ruminação autobiográfica em roda livre. Entramos nesse comboio em andamento e saímos abanados pelas curvas e contracurvas sucessivas.

“A primeira vez que li este texto era um enigma”, confessa o actor. “Sinto uma diferença enorme entre quando olhei para este texto com incompreensão total e agora.” Há uma ausência de um encadeamento natural entre as frases, através das quais o autor faz desfiar “uma enxurrada de palavras”. Daí que Francis Seleck, que é também o tradutor para português, tenha pensado de imediato na Sala de Exposições do Teatro da Politécnica (onde a peça está até 30 de Julho) como cenário ideal para A Inquietude. As portas e as janelas abrem-se para o Jardim Botânico, convidam à entrada dos sons da natureza – e isto tendo em conta que aquele que vemos em palco fala para os animais, para as plantas e para as pedras –, mostrando como “o homem é pequenino no universo”.

“É essa também a inquietação dele”, diz Seleck, “É alguém a perguntar-se o que faz aqui. E acaba por não interagir. Faz lembrar o Beckett, tem que ver com o vazio e o nada do Beckett.” E, de facto, a enxurrada de palavras funciona como máscara imperfeita e ineficaz que tenta tapar debalde o vazio. Em A Inquietação ouve-se um horror e uma fuga desesperada ao vazio. Fala-se de forma quase ininterrupta para evitar o silêncio, fala-se para não parar, para não ter de haver um confronto com a solidão.

Uma questão de ritmo

Para Francis Seleck, A Inquietude é “uma experiência para o espectador”. Um desafio a que consiga agarrar-se aos sentidos e às imagens estimulados por Novarina, num jogo permanente com a linguagem, desde jogos fonéticos a uma pontuação aparentemente errática, que o encenador diz ser usada pelo autor para marcar um ritmo. “Acho que o Novarina cria – com a linguagem – novos sentidos, novas imagens de que não estávamos à espera quando lemos ou ouvimos uma frase. Coisas novas em que nunca tínhamos pensado, numa junção de palavras que nos abre ao mundo. Por isso é que acho que é tão contemporâneo, não tendo o tom de asfixia discursiva que temos agora. É bom para respirar.”

Essa respiração contagia a todo o momento a interpretação de Eduardo, entregue àquilo que Seleck chama “uma maratona articulatória e de memória”. Em Novarina, acrescenta, “o actor é uma espécie de atleta”. Para o actor, aliás, o enigma do texto foi-se resolvendo com uma tomada de decisões que passou pela criação de balizas e de imagens próprias que o ajudassem a navegar por entre o caudal palavroso do autor franco-suíço. E para o estabelecimento dessas balizas foi fundamental a insistência na infância, nos pais e em Deus. Tudo a fim de vincar um questionamento existencial, dificultado por “não haver psicologia”.

Ou seja, não há personagem. Há apenas uma partitura e a ideia de Novarina de que o actor deve ser um bailarino. Para que possa dançar com as palavras, naturalmente.

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