O coisismo do Presidente

Belém é uma lição e o seu actual ocupante é um professor, um magister que administra lições, para as quais não lhe faltam material didáctico e auditório. Nas vésperas de se jubilar, acrescentou à sua sebenta de introdução à política uma lição que podia ter sido a primeira, mas será certamente a última. O título foi inspirado na Guerra das Estrelas: “A derrota da ideologia pelo pragmatismo”. É uma lição máxima de política minimal. O “pragmatismo” que o Presidente advoga é, como o nome indica (pragma, em grego, significa “coisa”), um coisismo. E os coisismos têm uma condição supra-ideológica e infra-política. Estão para além da ideologia e ocupam o lugar vazio de onde a política foi evacuada. Ser Presidente da República no sentido mais literal (da res publica, isto é, da coisa pública; em latim, “coisa” diz-se res, rei, respectivamente nominativo e genitivo), tal como o entende o nosso magister máximo e político mínimo, consiste na missão pastoril de zelar pelas coisas para que elas sigam o seu caminho imanente de reificação (de coisificação), para que a ideologia não venha desviar a força e a vontade mecânica que as determinam e a as cumprem plenamente. As coisas cumprem as leis da natureza; a ideologia, por seu lado, como o nome indica, é a lógica de uma ideia — de uma ideia que, nas suas versões extremas, totalitárias, pretende explicar o movimento da História como um processo único e coerente e põe-se contra a realidade. Não é exactamente nestes termos que o Presidente-magister formulou as coisas (digamos assim, pois quando o pragmatismo derrota a ideologia até as ideias que vêm à cabeça se tornam coisas), mas todos nós, bons alunos, percebemos que era isto que ele queria dizer. Aprendemos que a premissa do seu coisismo é a de que todas as ideias são falsas, e todas as coisas são verdadeiras. E na medida em que a ideologia é uma concepção política do mundo (nos totalitarismos, é o instrumento único de uma organização política), celebrar a sua derrota é gritar “Viva o materialismo!”. Só o materialismo (ou a sua versão, na última lição do Presidente) não é uma visão do mundo e não deseja uma política. Segundo esta lição, também não há sujeitos políticos, não há o Eu e o Nós: há apenas aquele pronome indefinido que em francês é o on, uma partícula tão simples, mas que já forneceu matéria para grandes discursos filosóficos. O on é a força das coisas que não falam, mas é como se falassem porque se apoderam de nós, têm-nos nas mãos e é escusada toda a ideia de resistência porque ela sairá derrotada: é a derrota da ideologia e a vitória do pragmatismo, isto é, do coisismo. Por isso, segundo a lição derradeira do Magister-presidente, toda a política sucumbirá à gestão, e o governo não é uma atribuição dos homens mas das coisas — da realidade. O materialismo é um realismo: assim poderia terminar a lição do magistral presidente. Segundo esta lição, nós — povo, cidadãos, alunos — apenas devemos responder à injunção das coisas. A nossa condição é a de cabeças reificadas, medusadas. A política minimal do pragmatismo é aquela que nos dá a saber que as coisas são inevitáveis — é a ordem das coisas — e temos de aceitar que nada pode mudar. O presidente não faz política — dá lições; e nós temos o dever de escutá-lo, para aprendermos o que é a Coisa social, a Coisa governamental, a Coisa económica, todas as coisas da grande Coisa, até percebermos o que é a coisa em si, to pragma auto, como se diz em grego. Não é que eu saiba grego, mas aprendi esta expressão num comentador de Platão. Afinal, a lição do Presidente está cheia de platonismo.   

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