O cinema popular e o festival dos intelectuais

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A investigadora Maria do Carmo Piçarra dirige-se mais aos seus pares do que ao leitor médio, presumível público-alvo deste livro

A anunciada reabertura do renomeado Cinema Ideal, na Rua do Loreto, a mais antiga sala de cinema de Lisboa (ou melhor, aquele que foi o primeiro espaço inteiramente destinado à exibição de filmes na capital), originou um estudo, por parte da investigadora Maria do Carmo Piçarra, sobre a sua história, assim como a da Casa da Imprensa, sua proprietária, no que toca à ligação desta com o cinema. São histórias radicalmente diferentes (com pouquíssimos pontos de contacto) que dividem O Cinema Ideal e a Casa da Imprensa - 110 Anos de Filmes em duas partes bem distintas.

A primeira, dedicada ao Salão Ideal (o primeiro nome da sala), é a menos interessante ou, pelo menos, aquela pela qual a autora revela menos interesse. Muita informação – acerca de Júlio Costa, da Empreza Cinematográfica Ideal (virada para a produção), das primeiras débeis tentativas de realizar uma longa-metragem integralmente portuguesa, do incêndio suspeito que deitou por terra os sonhos de Costa – já constava, e mais detalhadamente, no capítulo assinado por Piçarra, consagrado aos anos 10 do século XX, para Cinema Português: Um Guia Essencial. A restante parece ter sido coligida meio à pressa (talvez para que a publicação do livro pudesse coincidir com a reabertura do cinema, sendo que veio a antecipar-se a esta) – as décadas de decadência do Ideal, cada vez mais de reprise, cada vez mais popular, cada vez mais masculino, dos ardinas do Bairro Alto, que acolhia a grande maioria dos jornais lisboetas, cada vez mais degradado (até o estuque do tecto caía), que desembocam na pornografia do Cine Paraíso (motivadora de uma inspirada boutade com o João de Deus de César Monteiro) passam a correr e o único testemunho “vivo” recolhido é de um empregado de um restaurante vizinho, que define a programação do cinema como de “pouca conversa e muita acção” (óptima e concisa descrição, releve-se). 

Por outro lado, a escrita está demasiado presa aos preceitos académicos. Informações que poderiam surgir numa nota de rodapé, como a precisão de uma fonte de Manuel Félix Ribeiro, ganham direito ao corpo do texto, como se o próprio processo de investigação fosse tão ou mais importante do que a história contada — e, porventura, essa será a grande pecha destas primeiras páginas: a autora dirige-se mais aos seus pares do que ao leitor médio, presumível público-alvo deste livro. 

No entanto, Maria do Carmo Piçarra desenterra valiosíssimas preciosidades históricas, como o saboroso e barroco retrato que Santos Mendes faz do Ideal: “… um cinema de aspecto feião, de grandes cartazes, a cuja porta uma mulherzita vende pevides e amendoins aos frequentadores da ‘sala’. É o ‘Loreto’, ou segundo o seu nome pomposo, ‘Salão Ideal’.” Ou a fotografia de uma mulher a olhar para os cartazes à entrada da sala (que se encontra entre as imagens compiladas nesta edição), que provoca uma curiosa especulação (um pequeno desvio ao rigor “científico” dominante até aí).

Posto isto, o grosso do livro destaca a relação da Casa de Imprensa com o cinema. Apesar de ser proprietária do Salão Ideal desde a década de 20, esta nunca o explorou, deixando essa tarefa a outros, não se responsabilizando pela programação. De resto, os frequentadores do pequeno cinema de reprise ao Camões estavam longe de serem os pretendidos para os eventos cinéfilos que a Casa começou a organizar nos anos 60, preferindo os do S. Luiz, Alvalade ou Monumental. 

Na perspectiva de financiar o seu fundo de apoio aos jornalistas mas também de trazer a Portugal o que de melhor se fazia ao nível de cinema por esse mundo fora, a Casa realiza, em 1964, o I Festival de Arte Cinematográfica de Lisboa, em que se programam filmes premiados noutros festivais, e se distribuíam Caravelas, de ouro e prata, aos vencedores (ao jeito das Palmas e dos Ursos de Cannes e Berlim). As primeiras duas edições, subsidiadas pela Fundação Gulbenkian, foram êxitos de público e resultaram em importantes encaixes financeiros para a Casa da Imprensa (além de terem trazido obras relevantes da época e ainda inéditas em Portugal: A Noite, de Michelangelo Antonioni; Fellini 8 ½, de Federico Fellini; Disparem Sobre o Pianista, de François Truffaut). Do terceiro e último, organizado com o Serviço Nacional de Informação (com o intuito de suavizar a censura nos filmes exibidos), não se poderá dizer o mesmo. A Casa da Imprensa perdeu muito dinheiro, o que impediu futuras edições do festival. A partir daí, dedicar-se-ia somente a ciclos de cinema anuais, compostos de filmes já estreados no nosso país, programados por Lauro António, Vasco Granja, António-Pedro Vasconcelos, entre outros. Aos poucos (principalmente até ao 25 de Abril), e apesar dos temas variados — cinema americano, cinema europeu, cinema fantástico, risos e sorrisos —, estes ciclos, que terminariam apenas em 1980, foram-se esgotando (os nomes dos realizadores e mesmo os títulos dos filmes repetiam-se de ano para ano), embora nunca perdessem o apreço do público, ávido de cinema. 

Esta parte de O Cinema Ideal e a Casa da Imprensa, que ocupa a maioria das suas 130 páginas, flui bastante melhor do que a primeira. A investigação perde o papel principal ou é ofuscada pelo relato fascinante de uma história meio desconhecida: a da realização do primeiro festival de cinema português, dos obstáculos, da burocracia, da pequenez e da ambição. Assim como a dos ciclos de cinema, que marcaram a vida cinéfila nacional (sobretudo lisboeta), como o comprovam as polémicas que os acompanharam (referidas no livro). Assinale-se, mais uma vez, uma peça jornalística resgatada por Maria do Carmo Piçarra ao esquecimento — uma crítica arrasadora a Alphaville, de Jean-Luc Godard, da autoria de Manuel de Azevedo, à data da sua primeira passagem em Portugal: “(…) há qualquer coisa de suficiente, de empolado, de filosofia barata que torna o filme de Godard insuportável ou, se quiserem, inaceitável.” Nestes casos, a pesquisa é preciosa.

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