O cinema como ópera

Na nova cinematografia de Oliveira, o gesto de mostrar jamais deixa que o captado seja percebido ilusoriamente pelo espectador como a coisa em si.

Após uma longa colaboração com Manoel de Oliveira, João Pais lançou-lhe um desafio singular: um filme-ópera. Veio a ser Os Canibais (1988), com música de João Pais. Havia, é claro, antecedentes: por exemplo, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (1963), de Jacques Demy, com música de Michel Legrand e diálogos inteiramente cantados. Mas, no caso de Manoel de Oliveira, bem poderia dizer-se que o projeto levava às últimas consequências o sentido da sua nova cinematografia. Afinal, os seus filmes já eram óperas latentes, embora com diálogos falados.

Óperas, não enquanto “obra de arte total”, produto da fusão dos elementos e visando o efeito de realidade intensificado pela música (à maneira de Wagner, que, no seu “palco invisível” de Bayreuth, prefigurara já o cinema como “obra de arte do futuro”), mas sim enquanto reunião ou encontro de elementos separados, cada qual com a sua própria autonomia, deixando transparecer a dissociação entre ator e personagem, os dispositivos de narração e o narrado, o olhar da câmara e o objeto captado.

Oliveira explicou algures (Conversations, ed. Cahiers du Cinéma, 1996) que o seu cinema anti-ilusionista se fundava numa deontologia. Referia-se à autonomia do espectador, ao respeito pela capacidade deste de pensar pela sua própria cabeça ou — como quem diz, em termos kantianos “sem a tutela de outrem” (logo, também sem a tutela do realizador). Donde se inferia que Oliveira se recusava a manipular o espectador, a induzi-lo emocionalmente. A sua posição era, pois, diametralmente oposta à da tradição naturalista, a qual, na fórmula de Zola, pressupunha a necessidade de “conduzir os espectadores de chicote na mão” (Le fouet à la main, in: Le Naturalisme au Théâtre, 1881).

Se pensarmos bem nas estratégias de comunicação hegemónicas nos meios de comunicação de massas desde o cinema e as telenovelas à publicidade, passando pelo jornalismo e pela comunicação política —, dir-se-ia que vivemos mergulhados numa Pulp Fiction nos enredos da qual todos manipulam, todos se deixam manipular e já ninguém distingue entre verdade e efabulação.

É contra essas estratégias de comunicação hegemónicas que Manoel de Oliveira se insurge ao começar por submeter o cinema à “crítica imanente do material” (como diria Adorno). Fá-lo em nome de uma deontologia contra a ausência de deontologia que carateriza a realidade mediática ou virtual esse mundo fictício que coloniza cada vez mais totalitariamente o mundo vivido.

Na nova cinematografia de Oliveira, o gesto de mostrar jamais deixa que o captado seja percebido ilusoriamente pelo espectador como a coisa em si. É nesse sentido que os seus filmes são “óperas latentes”. Assim como “morrer cantando” é uma convenção comum nos palcos de ópera (aliás citada em Os Canibais), assim também em Oliveira as convenções da narrativa são assumidas, em vez de dissimuladas. “Narrar” algo não é o mesmo que “fazer-se passar por” algo. Este já era o problema que levava Platão a condenar a duplicidade do ator no teatro. E que levará Brecht a desenvolver uma dramaturgia “não-aristotélica”.

Em 1999 tive o privilégio de apresentar uma comunicação sobre Os Canibais num simpósio em Salzburgo, por ocasião do festival, organizado sob a égide de Gérard Mortier. Dedicado à ópera no cinema e nos meios audiovisuais, o mote do simpósio remetia para uma citação de Wagner (1872), já a pensar no teatro de Bayreuth: “Ações da música tornadas visíveis.” Formulado no seu negativo, o mote podia aplicar-se à filmografia de Oliveira: “Ações do cinema tornadas audíveis.” Há um tempo wagneriano nos diálogos, nos planos, nos movimentos da câmara que transforma o ver num perscrutar e o perscrutar em escuta: escuta interior. No limite, construímos nós as imagens como na Branca de Neve (2000), de João César Monteiro.

Professor catedrático jubilado (FCSH-UNL)

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