O Charlie já não será o Charlie

A história do Charlie Hebdo é indissociável da história da banda desenhada francesa e do ambiente cultural do Maio de 68. Ouvimos três especialistas para pensar o futuro do semanário na véspera da abertura do Festival de Angoulême, em França.

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Charlie Mensuel
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Jean-Marc Reiser
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Hara-Kiri
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Exposição Uma história do Charlie Hebdo em Angoulême
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Exposição Uma história do Charlie Hebdo em Angoulême
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Exposição Uma história do Charlie Hebdo em Angoulême
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Exposição Uma história do Charlie Hebdo em Angoulême
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Na exposição uma fotografia de Bernard Verlhac, aka Tignous, também morto no atentado
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Desenhos de Wolinski na exposição Uma história do Charlie Hebdo

Foi em 1995 que a banda desenhada francesa se viu dividida por uma polémica inédita. A entrega do Grande Prémio, em Angoulême, a Philippe Vuillemin provocou a ira de Morris e o incómodo de outros autores. O desenhador de Lucky Luke chegou mesmo a abandonar o júri do famoso festival que regressa esta quinta-feira sob o signo de Charlie Hebdo, o semanário satírico francês alvo de um atentado em Janeiro que matou doze pessoas.

A que se deveu a polémica em Angoulême? Mais do que ao estilo de desenho, ao conteúdo das bandas desenhadas de Vuillemin, em particular Hitler=SS, com textos de Jean-Marie Gourio. A sua publicação em formato de jornal e a exposição em galerias fora proibida em 1989 e os dois autores acabaram condenados, apesar das intervenções do advogado Thierry Lévy e do autor Gotlib (ambos franceses de origem judia). O que continham as páginas de “Hitler=SS”? Uma sátira brutal ao Holocausto, que representava, com o mesmo escárnio, vítimas e algozes.

Este introito é útil para contextualizar culturalmente o Charlie Hebdo e pensar a sua eventual singularidade francesa. Vuillemin também desenhou na revista satírica que (re)nasceu em 1970 das cinzas da “bête et méchant” Hara-Kiri, proibida pelas autoridade depois de fazer humor com a morte de Charles de Gaulle. Resumindo, o jornal que deve o seu nome a Charlie Brown (sim, é verdade: foi emprestado pela irmã Charlie Mensuel, uma notável revista de BD) inscreve-se na tradição do desenho humorístico e da banda desenhada francesa. “Nasceu do Maio de 68, da laicidade, de uma tradição rabelaisiana”, sublinha o historiador e crítico francês Jean-Christophe Boudet, evocando François Rabelais (1494-1553), autor de Pantagruel e Gargântua, como um antepassado directo do jornal. “Tem antepassados na imprensa satírica francesa, como o Le Charivari [publicação do século XIX]. A sua sátira significa emancipação da censura. Troça de todos os poderes, sejam políticos, religiosos ou económicos. Não tem mestre, nem Deus”.

Já no mundo anglófono a realidade é distinta e por várias razões. “O espírito do Maio 68 extinguiu-se rapidamente nos Estados Unidos e na Inglaterra”, lembra Jeet Heer, jornalista e crítico canadiano. “E as publicações dependem mais da publicidade do que as francesas, os anunciantes não gostam de imagens controversas. No mundo anglófono, os editores são muito sensíveis a esse tipo de humor pois as minorias estão mais atentas e melhor organizadas politicamente. E seus protestos são eficazes.”

Curiosamente, a Hara-Kiri e o Charlie Hebdo, nas suas diferentes encarnações, foram bastante permeáveis à influência da banda desenhada americana. A Mad, revista humorística fundada por Harvey Kurtzman em 1952 e na qual colaboraram Will Eisner, Tom Wolfe ou Jules Feiffer, “teve um impacto libertador nos autores franceses, como teve o Robert Crumb”, polémico e premiado autor americano de BD, recorda o crítico canadiano. “A tradição do underground americano revelar-se-ia mais profunda em França que nos EUA, inclusive na composição das páginas”.

O historiador Jean-Christophe Boudet concorda e acrescenta o nome do Saul Steinberg, ilustrador e cartoonista, que figurou em 1947 ao lado de Arshille Gorky e Robert Motherwell na exposição Fourteen Americans. “No entanto”, assevera, “a partir dos anos 70, a mais importante influência surgiu da primeira geração de autores franceses da Hara-Kiri”. Charb, o director do Charlie Hebdo que morreu no atentado, e Riss, que estava na redacção na altura do ataque, continua Boudet, “encontraram a suas referências em Cabu [também vítima do atentado] e Jean-Marc Reiser”, que publicou em várias revistas de BD e cujo humor cru e minimalista não poupava as classes populares. “Em contrapartida, o Charlie não teve qualquer impacto na banda desenhada anglófona”.

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Robert Crumb depois de várias controvérsias em torno da sua representação de homens e mulheres afro-americanos abandonou o país natal e estabeleceu-se numa vila francesa

O que mudou

A história do Charlie Hebdo é indissociável das mutações que a banda desenhada e sociedade francesa conheceram desde os anos 70. Apagado o nome Hara-Kiri, a Charlie Hebdo sobreviveria até 1981: a descida do número de assinaturas e das vendas nas bancas assinalava o progressivo declínio das revistas periódicas de banda desenhada, que atingirá a Charlie Mensuel. Regressará em 1992, com os autores da primeira geração, mas a outra sociedade. “Sim, é verdade, vão encontrar uma sociedade mais conservadora, de que o regresso das religiões me parece um sintoma, e um contexto económico mais difícil. O politicamente correcto e o mercado transformaram-se em ideologias. Eles tiveram a oportunidade, no entanto, de ‘capitalizar’ a sua gloriosa luta contra a censura, o que lhes permitiu manter a independência”.

O arqueólogo português Cláudio Torres, especialista em cultura islâmica, também acompanhou a evolução do jornal. Um autor como o Wolinski, outras das vítimas, “foi muito importante para a minha geração, pelo modo como cultivou, no seu desenho atávico, o protesto e o humor. Simbolizou, mais do que a França, a Paris do Maio do 68, da contestação”. Mas os tempos foram mudando. “Era uma publicação de esquerda, anti-clerical, que troçava dos poderosos e começou a troçar dos mais fracos, dos pobres, dos que estão em baixo. A sua sátira deixou de ter a mesma imaginação e subtileza”, lamenta. Entretanto, o jornal terá esquecido que também Paris mudara e que, sobretudo, reflectia uma realidade mais complexa. “Esse espírito herdado dos anos e 60 e 70 confronta-se ainda hoje com uma forte comunidade magrebina que fugiu da guerra e da pobreza dos seus países e à qual só resta a religião. É com o Islão que tem forjado a sua identidade, no seguimento da colonização e do terrível conflito que foi a Guerra da Argélia”.

O historiador português não pretende explicar o massacre de 7 de Janeiro, mas enfatizar, cautelosamente, a complexidade das circunstâncias que são também políticas e globais. “Não podemos desligar o massacre terrível da reacção dos EUA ao 11 de Setembro e à criação de Israel numa zona que foi sempre um ponto de encontro entre civilizações. Foram acções estúpidas e retrógradas que arrastaram as pessoas para um ambiente de violência e guerra”.

Nesta encruzilhada terrível e explosiva, faça-se a pergunta: é possível encontrar representações de Maomé no mundo muçulmano? “Sempre existiram, sobretudo no mundo de expressão xiita, influenciada pela cultura persa. Mas nunca se representou a grande divindade. O deus-pais nunca foi representado em nenhuma religião. As representações dentro da iconografia religiosa são muito recentes. É uma figura tão forte que não é representável.” Esta iconofobia religiosa não é um atributo apenas do Islão. Marcou a história do judaísmo e do cristianismo. “De uma forma geral, nas religiões monoteístas há uma tendência para a abstração e, sobretudo, quando a dominante civilizacional é o grande comércio. Nas zonas rurais, no mundo dos mosteiros, no continente europeu sobreviveu uma representação figurativa muito forte. Foi dominante no catolicismo bizantino e romano, enquanto no Mediterrâneo sobreviveu uma representação abstratizante”.

Ir mais longe

Regresse-se, entretanto, ao Charlie Hebdo. Ouviram-se críticas ao modo como o jornal representava as minorias, ultrapassando, várias vezes, a fronteira da sátira racista, com as suas óbvias distorções. Nada de novo. Apesar de importantes excepções (Farid Boudjella, Baru, Yvan Alagbé, entre outros), a história da BD franco-belga está cheia de estereótipos, de imagens que reduzem o outro asiático, africano, árabe a uma caricatura (quem se recorda de Iznogoud, de Goscinny e Tabary?).

No universo dos comics e das novelas gráficas americanas, embora com os seus casos - destaque-se o debate provocado por “Habibi”, de Craig Thompson -, o cenário altera-se, pois os críticos e os jornalistas são velozes a identificar os exageros e os “desvios” dos autores. Robert Crumb que o diga: depois de várias controvérsias em torno da sua representação de homens e mulheres afro-americanos, abandonou o país natal e estabeleceu-se numa vila francesa.

Fale-se então de sátira racista que, como toda a sátira racista, se abate, nos países ocidentais, sobre as minorias. “Sim é verdade, ela existe [no Charlie Hebdo]. Mas a melhor resposta a esse tipo de sátira só poder ser uma: a da crítica, nunca a da violência”, diz Jeet Heer.

Jean-Christophe Boudet tem reservas quanto ao uso da palavra “racista”. “Os desenhos humorísticos do Charlie Hebdo troçam de todas os sistemas e estruturas. São imagens de imagens e, por isso, incompreensíveis para quem olha para uma imagem apenas como uma representação. A capa do ‘Charlie dos sobreviventes’ é nesse aspecto exemplar. Não é o profeta que é caricaturado, mas as imagens que algumas pessoas têm do profeta, por razões que nem sempre têm a ver com a religião”.

Para o historiador o que está em causa é um “analfabetismo” de imagens que ainda grassa na sociedade, por isso “gostava de ver o mundo muçulmano a debater ou clarificar a sua posição em relação às imagens.” Mas não terão ido os caricaturistas longe de mais na sua sátira? “Não, pelo contrário. Os seus trabalhos denunciavam, pelo riso, tudo o que era norma ou que se estava a tornar norma, como o racismo. É importante também salientar que no Charlie todo o insulto que prometia a morte e o sofrimento era visto como um encorajamento para ir mais longe. O radicalismo das edições mais recentes, antes do ataque, foram proporcionais ao aumento crescente das ameaças”.

Todavia, no ano passado, o Islão e a comunidade muçulmana não constituíram os alvos preferidos do jornal. O “pódio” foi ocupado pela família Le Pen, o presidente François Hollande e o primeiro-ministro Manuel Valls. A acusação de islamofobia soará portanto injusta. Mais adequada é conclusão de que o mundo em que morreu e ressuscitou o Charlie Hebdo – aquele que em cresceram os irmãos Kouachi e em que os EUA são aliados assumidos da Arábia Saudita – não é o mesmo que o viu nascer. Que futuro o aguarda? “Não há uma resposta, apenas perguntas”, sugere Jean-Christophe Boudet. “Passará a deter um poder editorial inédito? Correrá o risco de se transformar numa instituição? Ver-se-á obrigado a reinventar-se na Internet? Tornar-se-á numa revista mensal, reservando as polémicas para as redes sociais, para os blogues? Não sei.”

Se nos devemos congratular com o poder que o papel e caneta ainda conservam, também devemos aceitar que a memória do Charlie (Brown) está cada vez mais distante.

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