José Medeiros: "Talvez a aventura me tenha escolhido"

José Medeiros é uma das mais magníficas vozes da música portuguesa. Nas suas canções, não ouvimos apenas o músico, mas também o homem do teatro ou o realizador – é dessa riqueza de olhares que nasce a sua singularidade. Aprendiz de Feiticeiro é o seu novo álbum.

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FERNANDO RESENDES
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No início é a só a voz, aquela imensa voz rouca, cava e tão expressiva. “Se tu me visses / na mentira dos espelhos / talvez Ulisses / se tu me visses”. Quase no fim, na décima sexta das dezassete canções, há uma viagem à Lua com Meliés, há a harmónica que Morricone ofereceu a Sergio Leone em O Bom, o Mau, e o Vilão, há o ameaçador “are you talking to me?” de Robert de Niro em Nova Iorque ou a imortal melodia de As time goes by em Casablanca. A mãe das ficções, a Odisseia de Homero, e aquelas que, no século XX, o homem inventou com um “comovido coração a bater a 24 imagens por segundo”.

Nelas, feito delas, José Medeiros, micaelense de nascimento e residência, lisboeta por adopção, um músico longe de ser “só” músico que vem construindo ao longo dos anos, discretamente, um singularíssimo corpo-de-obra. Aprendiz de Feiticeiro, o seu último álbum, sucessor quatro anos depois de Fados, Fantasmas e Folias, tem essa singularidade inscrita no título e na edição ela mesma: o músico, que é também homem do teatro e do cinema, junta ao CD um DVD com O Outro Lado do Espelho, documentário sobre o seu percurso e documento de como, em palco, faz das canções teatro musicado.

No disco, como é habitual, José Medeiros viaja: nas caravelas de Balada do varandim, pelas sementeiras na aldeia micaelense de João Bom, observando a Lua d’Agosto no Rio de Janeiro, caminhando pela Mancha de Quixote, pela magia do cinema ou através da Fanfarra dissonante, com “a crise e a bancarrota” a “dançar um pas de deux… (faites vos jeux!)”, no país ensombrado que é hoje o nosso.

A música é também ela uma digressão por géneros e tempos. Os mistérios telúricos da tradição apresentam-se na magnífica “PartIlha” feita de flautas, sanfona e violino, a balada descarnada (e a chanson aqui tão perto, apesar da guitarra portuguesa), encanta em Balada do varandim), há bossa feita melancolia no balanço da já citada Lua d’Agosto no Rio de Janeiro ou Orientes entrevistos na opulenta A suave inquietação das traineiras. “De uma forma muito natural, sem planear nada, eu tenho esta tendência para ser ecléctico”, afirma.

José Medeiros, 63 anos, ao telefone desde São Miguel, carro encostado na berma da estrada e olhar observando o mar e as nuvens sobre a ilha, dirá ao Ípsilon: “Não sei se escolhi a aventura, talvez a aventura me tenha escolhido a mim”. Mais à frente, confessará que isso, a aventura, “é inevitável nos ilhéus”: “estamos aqui no mar e tentamos estender os braços para os dois lados do Atlântico, ou para o país na Europa, ou para as Américas”. Está a falar dele e está a falar de um outro açoriano, célebre noutras paragens, a quem tem dedicado ultimamente muito do seu tempo.

Ao mesmo tempo que recebemos o novo passo de uma discografia inaugurada no final da década de 1970 e que lhe valeu em 2004, com Torna-Viagem, o Prémio José Afonso, estreia Livreiro de Santiago, documentário ficcionado, assim o define, sobre Carlos George Nascimento, corvino filho de baleeiros emigrado para os Estados Unidos e, depois, para o Chile, que se tornaria o primeiro editor do jovem Pablo Neruda (ou de outra Nobel da Literatura, Gabriela Mistral). Filmado com a equipa de Tiago Rosas, realizador de O Outro Lado do Espelho, conta com participação de Maria do Céu Guerra, Filipa Pais (uma das vozes de Aprendiz de Feiticeiro) ou de Jorge Palma. Teve antestreia quarta-feira em São Miguel e, em Fevereiro será exibido em Lisboa (dia 20 na Casa dos Açores, dia 27 no Teatro A Barraca).

A coincidência da edição do disco, que tem também documentário, com o lançamento do filme, é isso mesmo, uma coincidência. Mas, inadvertidamente, ilustra bem a forma como José Medeiros encara a criatividade. “Nunca houve uma fronteira muito nítida entre as minhas actividades na música, no teatro ou no cinema, talvez por ser de uma família de actores e músicos”.

No início da década de 1970, trocou a ida para a Universidade em Lisboa por uma temporada com a sua banda no Paquete Funchal – andou entre São Miguel, Lisboa e o Funchal a tocar canções dos Beatles, dos Rolling Stones ou de Ray Charles, isto enquanto descobria em José Afonso ou Adriano Correia de Oliveira música que marcaria decisivamente o seu percurso futuro. Foi depois assistente de realização em Lisboa, foi nos anos 1980 realizador da RTP Açores, rodando Xailes Negros ou Há Mau Tempo no Canal e compondo as bandas-sonoras dos filmes produzidos. A sua música tem inscrita essa indefinição entre linguagens artísticas. Ele é, afinal, e como se auto-intitula no novo álbum, Aprendiz de Feiticeiro. “[O título] é uma homenagem aos grandes mestres. O Chaplin músico, ‘clown’ e realizador, um imenso feiticeiro. O Orson Welles e o Kurusawa. A outro nível o Zeca Afonso, o Tom Jobim e o Ray Charles, grandes feiticeiros que sempre me tocaram profundamente. Enquanto tiver fôlego quero continuar a ser aprendiz desses grandes feiticeiros”.

Aprendiz de Feiticeiro foi gravado entre Albarraque, em Sintra, Coimbra (para assegurar que Manuel Rocha, da Brigada Víctor Jara, estaria no disco) e São Miguel. Foi construído “‘with a little help from my friends’”, como diz, citando a emblemática canção dos Beatles. Teve direcção musical de Jorge A. Silva, que com Rogério Cardoso Pires e Gil Alves formaram o núcleo duro das gravações. Mais amigos e amigas se juntaram: Filipa Pais, Sara Vidal, o velho companheiro Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de Lisboa, ou William “Maninho” Nascimento, músico brasileiro radicado nos Açores há duas décadas.

É um álbum sem conceito. Uma colecção de canções, de histórias e deambulação por diferentes cenários, unidos pela sempre magnífica voz de José Medeiros e pelo romantismo que carrega. Um álbum extraído da sua vida, das suas leituras, dos seus filmes. Com uma excepção, um “desabafo”, como lhe chama. Tal como as outras canções, aconteceu-lhe. Falamos da Fanfarra dissonante que citámos há alguns parágrafos. “É impossível olharmos à nossa volta e não acharmos que a orquestra está desafinada”, diz. Canção teatro (deliciosamente burlesco) para duas vozes (junta-se à de José Medeiros a de Pilar Silvestre), qual filarmónica de intervenção, verseja, por exemplo, “a bem da nação, a bem da nação / neste grotesco bailado vamos todos ao casino / que emoção”.

José Medeiros, que cria música intemporal, música para todos os tempos, é um feiticeiro atento. Sabe quando ser sátiro, sabe quando erguer a voz. Fê-lo novamente. É um prazer ouvi-lo.

 

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