Memórias de Família

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O barbeiro de La Lys

Carlos Ferreira, barbeiro dos oficiais, salvou-se das trincheiras Miguel Madeira

Toda a gente o conhecia por “Senhor Carlos” ou por Carlos Ferreira. O seu nome era Carlos de Souza Ferreira. Cantava, tocava, fazia teatro, tinha voz de tenor. Foi barbeiro em La Lys.

Carlos Ferreira, meu avô materno, nasceu em Leiria a 27 de Maio de 1894. A mãe morreu quando ele tinha 3 anos. Criou-o a avó. Aos 18 anos foi para a Nazaré trabalhar numa barbearia. Ali conheceu Maria Rocha, filha de pescadores. Casou aos 27 anos e teve três filhos, Adelina, Isabel (ainda viva, com 91 anos) e José Carlos. Mas antes disso, com os seus vinte anos, viu-se incorporado como soldado de infantaria no contingente de portugueses que seguiu para a frente da batalha na Flandres, em 1917.

Esteve em La Lys mas não correu perigo real. Por um lado era o barbeiro dos oficiais que preferiam mantê-lo na retaguarda, ileso e pronto para cortar barbas e cabelos. Os soldados faziam a barba a si próprios, alguns deles mesmo dentro das trincheiras. Mas os oficiais não prescindiam dos serviços de um barbeiro de mão hábil. «Se não fosse essa a minha profissão, vinha de lá sem uma perna ou sem um braço, isto se viesse vivo!», costumava ele dizer.

Por outro lado, a sua capacidade para contar histórias, cantar e tocar guitarra e viola, destacava-o entre os outros militares. «Ó Carlos, canta lá um fado». «Ó Ferreira, toca aí uma guitarrada», pediam constantemente os portugueses que serviam às ordens dos britânicos e que tinham saudades do seu sul. Estava sempre pronto para animar os soldados e mesmo «as altas patentes», como ele lhes chamava, gostavam de o ter por perto.

Graças ao seu prestígio, não como combatente mas como suporte moral das tropas, foi escolhido para integrar o contingente português que desfilou em Londres, no dia do Desfile da Paz, a 29 de Julho de 1919. Assistindo à Parada, no palanque real, junto ao Rei George V, à rainha e ao Príncipe de Gales, o futuro Eduardo VIII, achavam-se o ex-rei de Portugal, exilado em Inglaterra, e a sua mulher Eugénia Vitória.

Mas o maior orgulho do meu avô nessa visita a Inglaterra foi um episódio que não se acha documentado a não ser pelas suas palavras que todos tiveram sempre por honradas:

«Eu lanchei com a rainha D. Amélia», dizia-me ele. E eu nunca duvidei. Como nunca duvidei quando afirmava:

«O meu pai teve 56 filhos de várias mulheres, mas a todos assumiu e deu o nome de família. Uma vez em Leiria estive à mesa com 15 irmãos que andavam espalhados pela Nazaré, Leiria, Almeirim e Lisboa».

Regressou de França, em 1919. Já casado, com filhos adolescentes, foi viver para Alcobaça para que eles prosseguissem estudos na Escola Agrícola Vieira Natividade. O seu cartão da Liga dos Combatentes, da delegação de Alcobaça, data de 1 de Março de 1935. A seguir, rumou a Leiria para os filhos continuarem a estudar nos cursos Comercial e Industrial. Ali, tornou-se cabeleireiro de senhoras na rua do mercado, a única rua em que a minha avó Maria Rocha aceitaria viver. Porque era ali que diariamente chegavam, da Nazaré, as camionetas com as peixeiras que iam vender ao mercado. Era uma “Little Nazaré”. Ali passei os Agostos da minha infância, ajudando o meu avô a escovar as senhoras, alcançando os ganchos e aprendendo a fazer ondulações. As clientes diziam que o senhor Carlos, com o cabelo às ondas e o bigode, era parecido com o Vittorio de Sica. Os seus olhos brilhavam ao ouvir isto, tanto como quando me falava, orgulhoso, da batalha de La Lys.

Está sepultado no talhão dos Combatentes da Grande Guerra, no cemitério da Nazaré.

Jaime Rocha é escritor 
 

  • José António Rebelo Silva, prior da freguesia de Colares desde 2006, ofereceu-nos uma missa que nos comoveu e, espantosamente, consolou.

  • Os dias contigo são os bocadinhos de manhã, tarde e noite que são avaramente permitidos aos mais felizes.

  • O que contam os descendentes de quem viveu a guerra de forma anónima? Cem anos depois do início da I Guerra Mundial, já sem a geração do trauma, a memória reconstrói-se e tenta-se a biografia portuguesa do conflito europeu.Durante três dias, os testemunhos chegaram ao Parlamento na iniciativa Os Dias da Memória.

  • Ao contrário da generalidade dos militares portugueses evocados nestas páginas, o contra-almirante Jaime Daniel Leotte do Rego (1867-1923) não precisa de ser resgatado do esquecimento

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