O bairro e a cidade encontraram-se e o kuduro pôs Angola no mundo

I Love Kuduro, nas salas de cinema portuguesas, é o documentário que quer mostrar que Angola também é um país criativo. “Às vezes chego à cama e penso, uau, sou uma estrela.”

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Cabo Snoop DR
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Multidão à espera do concerto de Os Lamas DR
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Titica DR
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Francis Boy DR
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Mário e Pedro Patrocínio Rui Gaudêncio

Já ouvimos tantas vezes estas batidas e já delirámos outras tantas com as danças daqueles que tudo conseguem fazer, sem se saber as histórias, personagens e aventuras por trás delas. I Love Kuduro, o documentário que chegou aos cinemas portugueses na quinta-feira, transporta-nos exactamente para essa realidade. Os irmãos Mário e Pedro Patrocínio, que assinam o filme, levam-nos para Luanda ao ritmo dos beats e, sem pedirmos licença, percorremos a cidade onde tudo parece ser tão simples, apesar de todos os problemas, e onde tudo é música e dança, apesar das dificuldades.

Angola está viva e dança. E essa é a magia do kuduro. Podemos não gostar do estilo musical mas não podemos negar a sua força. E se dúvidas existem, I Love Kuduro mostra-nos de forma simples, com história atrás de história, personagem atrás de personagem, como a música enche a casa e as ruas daqueles que tão pouco têm. E dos que têm muito também. A verdade é que não é preciso muito. E essa é muita da magia do kuduro. Às vezes umas palmas ritmadas bastam para que alguém comece a requebrar e a dançar como se não houvesse amanhã.

Miúdos de bairros devastados por uma guerra civil tornados estrelas, crianças que sonham um dia em poder lá chegar. Mil sorrisos e brincadeiras em rodas que dão a conhecer um país que parece ter tanto de dramático como de criativo. Francisco Alexandre tem 25 anos e é um desses miúdos que, há muito tempo, viu a sua vida mudar por causa da guerra. Viu-se obrigado a deixar a terra onde nasceu, Malanje, para em Luanda, com a sua mãe e os seus sete irmãos, procurar uma vida melhor. Era ainda uma criança, não percebia bem o que se passava, e viu na música o seu refúgio. Começou quase por brincadeira e hoje é Francis Boy, uma estrela em ascensão do kuduro. Não sai à rua sem que o notem. Pedem-lhe autógrafos, tiram fotos com ele. “Às vezes chego à cama e penso, uau, sou uma estrela”, conta em I Love Kuduro.

Francis Boy é apenas um dos 13 personagens que Mário Patrocínio, o realizador, e Pedro Patrocínio, o director de fotografia, seguiram em Angola para assim traçarem a história do kuduro. Que movimento é este? De onde vem esta música? Como é que isto tudo começou? Quem é que se lembrou da palavra? Foi este o ponto de partida dos irmãos que em 2011 se deram a conhecer com o documentário Complexo - Universo Paralelo, passado na favela mais violenta do Rio de Janeiro: o Complexo do Alemão que, em Dezembro de 2010, foi ocupado pelo Exército e polícia brasileiros, num combate conjunto contra o narcotráfico.

“Habitualmente o que nos chega de África é negativo. Ou porque se fala da guerra, da fome, da miséria, da violência, agora do ébola. Até nos esquecemos que ali existem também sociedades contemporâneas com artistas em todas as áreas”, diz Mário Patrocínio. “Se nós todos soubéssemos muito mais sobre os outros, a aproximação seria muito maior. A cultura pode ajudar nesse aspecto, a quebrar barreiras”, conta o realizador, que admite ter ficado surpreendido “com a imensidão de histórias neste movimento”. “O primeiro contacto que tive com o kuduro aconteceu nos anos 1990 na discoteca africana Mussulo, em Lisboa. Havia sempre um momento inacreditável na noite que eram as rodas de kuduro. De repente, parava tudo, tinhas os MC a improvisar e um beat frenético e uma forma desconstruída de dançar. Era incrível”, recorda Mário Patrocínio, para quem este foi o momento em que percebeu que queria saber mais sobre o fenómeno.

Visitou depois Angola e finalmente, há dois anos, “um empreendedor angolano” possibilitou uma co-produção para avançar com o documentário. “Era tudo contraditório e por isso tivemos que ir falar com as pessoas, procurámos todas aquelas que estão vivas e que de alguma forma foram as primeiras deste movimento”, diz Pedro, explicando que foram feitas inúmeras entrevistas, não só com kuduristas mas com testemunhas da explosão do kuduro. Aos poucos foram conhecendo as pessoas e percebendo alguns dos verdadeiros protagonistas da cena. “Tentámos escolher os personagens que nos dessem algo mais, no sentido de entender o kuduro como um todo. Cada um deles conta uma parte”, acrescenta Mário.

De Van Damme ao kuduro

Não falham por isso nomes como Tony Amado, o angolano por trás do nome deste movimento - que surge, nada mais, nada menos, de uma cena de Van Damme em Força Destruidora, de 1988. Tony Amado estava a ver o filme e numa cena num bar o actor surge a dançar com o “rabo duro”. E foi então que se fez luz. À boa maneira angolana, Amado começou para si a criar uma batida, “Dance, que dance, que dance, Van Damme” e daí nasceu o kuduro – era para ser cuduro mas a palavra foi considerada obscena, pelo que foi necessário recorrer ao "k".

“O mérito do Tony Amado é que ele pegou numa coisa que estava a nascer na baixa de Luanda, num meio um pouco mais privilegiado, e levou para todos os bairros. Depois veio o Sebem, com uma forma de falar diferente – tinha passado uns anos em Portugal – , uma forma de vestir diferente, umas influências mais house, techno e a coisa explodiu”, diz Mário, que contou com os dois músicos para o documentário. Eles querem ser os dois os pais do kuduro, numa luta pelo título que dura há anos. Sebem é autor de canções tão conhecidas como Felicidade. Tony Amado é mais sóbrio, Sebem acredita que para se estar no kuduro tem de ser diferente. E esqueça-se aqui Hélder, o Rei do Kuduro, tão popular em Portugal, mas que apenas pegou em temas angolanos e os compilou num CD, que se tornou num sucesso. Terá “aldrabado” os portugueses, já o disse várias vezes Amado, mas acabou por trazer para Portugal o que por Angola se fazia.

“O kuduro é muito diferente de todas as culturas musicais, tu ali absorves não só a própria música, como também o estilo de vida”, diz Pedro, contando que hoje cada bairro tem a sua própria forma de fazer e viver o kuduro, cujas canções por vezes parecem tão simples mas que muitas vezes transmitem mensagens para o país. “Tem muita força e eles têm muita criatividade nesse aspecto, têm uma capacidade de pegar nas coisas e dar-lhes uma cor própria. Apropriaram-se das coisas sem preconceito e de forma simples.”

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Sebem DR

Uma das histórias contadas em I Love Kuduro é a de Cabo Snoop, um rapaz dos musseques, que se tornou numa estrela com o hit Windeck - que deu nome à novela angolana que passou também em Portugal. “Há ali um grande jogo de palavras, há um duplo sentido das coisas, parece uma letra simples mas tem coisas por trás que eles lá entendem, se calhar nós cá não”, diz Mário. Cabo Snoop mostra-se neste documentário como um kudurista humilde que à, semelhança de Francis Boy, já agita multidões à sua volta. Não tanto como Nagrelhe, do grupo Os Lambas, que chega a um palco e grita “O papá chegou” e público responde “A fome acabou”, qual herói. E depois há a história de Titica, a primeira estrela transexual em Angola.

“O kuduro é livre, é o que tem de melhor. É uma cultura muito nova que antigamente era desprezada pelo meio, pelos artistas, e neste momento é simplesmente o maior passaporte de Angola para o mundo”, atira Pedro, que acredita que o movimento está a ajudar a mudar a mentalidade dos angolanos. “Se enquanto cineasta também contribuir para isso, então melhor.”

O músico Sarissari, um jovem da classe alta angolana formou uma dupla improvável com Tchoboli, de origens humildes a viver no instável bairro do Catambor. Os dois gravam ali no bairro, onde tantos têm medo ou não têm a coragem de entrar. Às tantas, diz no filme: “Se nós não criássemos essa barreira do ali eu não vou, ali eu não fico, ali eu não como, ali eu não me sento, ganhávamos mais, todos nós”. 

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Tchoboli e Sarissari DR
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