"O azulejo não parou no tempo, o azulejo renova-se todos os dias"

A sala Manuel dos Santos, com painéis até agora escondidos do público, foi inaugurada no Museu do Azulejo. Uma sala para contar a história do Convento da Madre de Deu e celebrar a azulejaria portuguesa.

Detalhe de um dos painéis da nova sala do Museu do Azulejo
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Detalhe de um dos painéis da nova sala do Museu do Azulejo Miguel Manso
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A sala Manuel dos Santos está agora aberta ao público Miguel Manso

O Museu Nacional do Azulejo (MNAZ), em Lisboa, inaugurou recentemente a Sala Manuel Dos Santos. O nome não é de reconhecimento óbvio mas pertence a um dos maiores artistas da azulejaria portuguesa que trabalhou entre 1690 e 1725. Quem o diz é a directora do museu, Maria Antónia Matos, que quer dar ao artista o seu devido reconhecimento. São dele os painéis que vemos nas paredes deste novo espaço, que sempre esteve fechado. É a primeira vez que a sala se abre ao público, depois de uma grande intervenção. Para já está vazia, brilham os azulejos, mas daqui a dois anos Maria Antónia Matos pretende instalar aqui o Centro Interpretativo do Convento da Madre de Deus, ocupado na íntegra pelo MNAZ. Talvez em 2017 o azulejo português já seja Património da Humanidade da UNESCO.

Era uma sala cheia de caixas até ao tecto. Tantas que nem nas paredes se conseguiam ver os grandes painéis de azulejos do século XVIII, assinados por Manuel dos Santos. Painéis, esses, desgastados pelo tempo e pela humidade e a precisar de restauro. Mais de mil caixas, na certa. Se calhar, até duas mil. Cheias de azulejos e pinturas por desvendar. Nem mesmo o chão se via. “Andávamos aqui e ficávamos sujos”, conta-nos a directora Maria Antónia Matos. “Era uma sala de reservas mas nem aqui podíamos trabalhar”, diz. “No museu, temos de saber o que temos cá dentro, sem um inventário completo daquilo que temos à nossa guarda não podemos falar de gestão, de conservação, de segurança, de avaliação, de investigação, de renovar a exposição permanente e de organizar exposições temporárias”, continua Maria Antónia Matos, explicando que foi assim que surgiu o plano de dar uma nova vida à sala.

Era preciso tirar as caixas e aproveitar então para renovar a sala que no projecto original do Convento da Madre de Deus, fundado em 1509 pela rainha D. Leonor, viúva de D. João II e irmã de D. Manuel I, correspondia à nave da igreja, construída mais tarde, em 1550, por ordem do Rei D. João III – e posteriormente decorada nos reinados de D. Pedro II, D. João V e D. José, entre finais do século XVII e meados do século XVIII. Mas, para um intervenção, isso era preciso dinheiro que o museu não tem. “Não conseguíamos fazer isto sem o mecenato,  nos dias de hoje já ninguém sobrevive sem mecenato”, desabafa a directora, que recorreu à Fundação Millennium BCP, um parceiro antigo do museu. “D. Leonor fundou o convento e agora quem de facto o protege é a Fundação Millennium BCP”, diz em tom de brincadeira, revelando que quando recorreu a esta fundação e explicou a necessidade de se fazer um inventário  e recuperar a sala foi desafiada para um projecto ainda maior. E porque não tornar esta sala no Centro Interpretativo do Convento da Madre de Deus para que todos conheçam a história e a importância do espaço?

“Se trouxer aqui crianças ou um público infanto-juvenil eles olham e ficam-se por aí. Se virem o centro interpretativo, se puderem tocar, se virem as imagens, criam logo um vínculo e uma empatia com o que estão a ver completamente diferente”, diz ao PÚBLICO Fernando Nogueira, presidente da Fundação Millennium BCP, que quer ajudar o museu a modernizar-se. E admite:  “Apoiamos muitos museus mas temos um particular carinho pelo Museu Nacional do Azulejo”. “Acho que é o elemento mais distintivo que nós [em Portugal] podemos ter para aqueles que nos visitam. Onde os portugueses realmente se destacaram foi nas artes decorativas e em particular na azulejaria”, acrescenta, defendendo que o que vemos no MNAZ não encontramos em mais nenhum lado. “Não é como a pintura flamenga que podemos ver em vários museus, por exemplo. Além de que falamos de um convento riquíssimo”, diz.

“Aliás diz-se a propósito do convento, no tempo de D. Leonor, que era uma autêntica pinacoteca”, interrompe Maria Antónia Matos, lembrando que pela Madre de Deus passaram grandes obras de arte da época e outras tantas foram deixadas ao convento em testamento. É o caso do Relicário de D. Leonor, “uma das melhores peças de ourivesaria da renascença” nascional. Concebido por volta de 1510 e todo feito em ouro, foi deixado pela monarca ao convento. Encontra-se hoje em depósito no Museu Nacional de Arte Antiga. “E depois há outras peças que estão dispersas por outras entidades [museológicas] e nós queremos exactamente dar essa dimensão”, explica a responsável, contando que até ao final da monarquia todas as rainhas tinham a preocupação de visitar o convento.

O Centro Interpretativo servirá então para dar a conhecer não só o próprio Convento da Madre de Deus, mas também as pessoas que nele viveram e que com ele se preocuparam, assim como as obras de arte que nele existiram. “Esta vai ser uma sala com uma grande carga histórica e um recheio cultural absolutamente extraordinário”, conta Maria Antónia Matos, revelando que o museu está a trabalhar com várias instituições e centros de investigação para este projecto.

Este é, por isso, um plano a médio/longo-prazo. “Dentro de dois anos deverá estar concluído”, aponta Nogueira. A primeira etapa está terminada: as caixas da sala passaram para os claustros do convento, onde uma equipa de especialistas trabalha na conservação dos azulejos que estavam escondidos nas reservas – estão agora à vista do visitante para que qualquer um possa apreciar e perceber o trabalho que aqui é feito. E a sala, essa, está aberta ao público. Como nova.

“Queremos restituir este espaço, devolver a sala ao olhar das pessoas que nos visitam e dar a Manuel dos Santos o destaque que merece”, diz Maria Antónia Matos, referindo-se ao autor dos painéis que chegaram ao museu depois do terramoto de 1755 como “um dos nomes maiores do Ciclo dos Mestres”.

O Ciclo dos Mestres é a designação correspondente ao período áureo da azulejaria portuguesa, da viragem do século XVII para o seguinte e que surgiu sobretudo como reacção às importações holandesas. Com o Ciclo dos Mestres o pintor de azulejo assume o estatuto de artista, tem formação e  assina as suas obras. “Manuel dos Santos é um desses nomes que está relacionado com os [azulejistas] Oliveira Bernardes, pai e filho, ou com o [monogramista] PMP”, explica a directora.

Maria Antónia Matos destaca o maior painel da sala, de 1720, com 21 azulejos de altura e 54 de comprimento, de temática franciscana – o que é normal, porque o convento da Madre de Deus foi um convento de Clarissas reformadas, propriedade da Ordem de Santa Clara, o ramo feminino da Ordem dos Franciscanos. “Encontramos então aqui São Francisco abraçado ao cruxificado e por baixo os três mandamentos fundamentais da ordem, que são a pobreza, a humildade e a castidade. E depois as virtudes que estão a calcar o vício que lhes responde, como a modéstia versus a vaidade”, explica a directora, fazendo notar a “influência da azulejaria holandesa em que ressalta o branco”. “A forma de tratamento da paisagem é absolutamente extraordinária, é de uma qualidade de pintura extraordinária”, afirma.

O brilho que estes azulejos têm hoje é resultado de um trabalho que levou semanas. Antes da intervenção, estavam longe do efeito que vemos hoje. A humidade e os sais ameaçavam tirar-lhes a cor e os traços. “Havia uma necessidade de intervencionar”, diz Lurdes Esteves, conservadora do museu que coordenou todo o processo. “Obviamente que tínhamos de retirar os azulejos e voltar a colocá-los no sítio.” E aqui a conservadora inovou, recorrendo a uma técnica de montagem que até hoje nunca tinha sido usada com azulejos. “Queríamos que depois da intervenção os azulejos fossem aplicados na parede exactamente da forma original”, conta, explicando que a solução encontrada foi aplicar os azulejos sobre placas de um material usado no fabrico de aviões, o aerolame, que foi sobreposto em caixas-de-ar. Assim, a humidade chega à caixa-de-ar mas não ao azulejo, que embora pareça não está colocado na parede. “Desta forma conseguimos ter um acabamento idêntico a um revestimento azulejar na sua própria estrutura mas na realidade está num suporte móvel dividido em várias placas, que não são visíveis. E quando for preciso intervir em algum azulejo não é preciso tirar tudo mas só a placa em questão.”

Lurdes Esteves é assim responsável por uma nova técnica de montagem que pode vir a ser aplicada noutros casos. “É um problema com o qual os conservadores e restauradores se estão sempre a debater, é que tiram-se os azulejos, tratam-se os azulejos mas depois ninguém trata as estruturas. Não há forma de tratar as estruturas, não há forma de tratar os problemas”, diz, explicando que “os azulejos depois voltam a ser aplicados na parede e voltam a sofrer o mesmo problema mas de forma muito mais acelerada”. “Eu acho que não havendo outra solução é preferível pôr isto assim do que em acrílicos, que também já vi, depois o acrílico empena e ficam as placas arqueadas.”

Em brincadeira, Fernando Nogueira diz que a conservadora fez hoje o que os portugueses fizeram com a azulejaria no século XVII: desprender-se do estabelecido e procurar alternativas.

Para a directora do MNAZ o “português é muito mais livre” na arte. “A azulejaria holandesa até pode ser de maior qualidade que a portuguesa, em termos materiais, mas o português tem liberdade de pincelada e de interpretação que os outros povos não têm.”

A azulejaria "é de facto apaixonante”, diz Maria Antónia Matos.  “O que é extraordinário é verificar que o azulejo não parou no tempo, o azulejo renova-se todos os dias. O azulejo adaptou-se inclusivamente à linguagem do computador”, continua, dando o exemplo do arquitecto Álvaro Siza, que terá em breve uma exposição no museu, e que privilegia este material. “O azulejo não é só azul e branco, é uma explosão de cor. Não é por acaso que foi usado em muitas das nossas estações de Metro.”

Na inauguração da sala Manuel dos Santos, o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, aproveitou para anunciar a candidatura do azulejo português a Património da Humanidade da UNESCO. “O azulejo português, ao longo dos últimos anos, tem vindo a ganhar destaque a nível internacional, servindo de inspiração, nomeadamente, a muitos costureiros e designers e está cada vez mais presente um pouco por todo o espaço lusófono”, escreveu depois em comunicado, explicando que esta candidatura está a ser preparada pela Direcção-Geral do Património Cultural em parceria com o Laboratório Nacional de Engenharia Civil e a Comissão Nacional da UNESCO e o Ministério dos Negócios Estrangeiros.

O PÚBLICO pediu esclarecimentos sobre esta iniciativa mas as respostas da Secretaria de Estado da Cultura foram parcas, explicando apenas que a candidatura que está há algum tempo a ser preparada pela tutela é a Património Material da Humanidade e engloba toda a azulejaria portuguesa, do século XVII até à contemporaneidade, épocas representadas no acervo do Museu Nacional do Azulejo. 

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