O amor ocupa a morte

1. Escrevo à mão porque tenho frio, vim para a varanda onde o sol queima e estão os livros de Herberto: um gato, uma serra eléctrica, nêsperas maduras, os morangos que trouxe da rua esta manhã. Estava na rua quando me ligaram, ia a caminho do correio com sacos cheios de lixo, plástico, papel, rodara tudo em busca de um ecoponto. O telefone tocou na esquina da Rua das Flores, eram onze e meia, a notícia já corria. Desliguei, liguei ao amigo que me deu O Amor Em Visita e outras primeiras edições, ele disse que acabara de me escrever, escrevera apenas, morreu o Herberto, e desligámos. Despachei o correio, desci ao Mercado da Ribeira para despachar o lixo, vi magrebinos ao lado de alentejanos, gente que acorda de madrugada sete dias por semana, deram-me cartões. Parecia que o mundo não tinha mudado, a notícia descia devagar, era bom caminhar, havia que caminhar, eu tinha de trabalhar, eu já estava atrasada, mas algo pousava como um depósito, e essa palavra era amor.

2. Pensei então que não conseguiria fazer mais nada senão estar dentro daquilo, a queda da palavra que vinha depois da morte, então depois da morte era isto, Herberto Helder. Nós sabíamos que um dia ia acontecer, e afinal não foi uma explosão, antes um silêncio enquanto o amor tomava conta, um silêncio por dentro do galo, da serra eléctrica, da gente na janela, da roupa branca. Pensei no meu amigo António Poppe quando me contou como lera o último livro de Herberto no dia em que saiu, foi até ao mar com ele. Eu estava em Matosinhos, era Junho, aquele ruído que não tinha nada a ver com a poesia, só com trabalhadores do comércio, especulação. Lembro-me de que estava em Matosinhos e fui ao shopping e comprei o livro, para mim e para oferecer, quatro exemplares. Depois levei-o para o Alentejo, onde já estavam outros livros de Herberto numa bolsa, tal como os trouxera do Rio de Janeiro. Durante meses não abri o celofane sequer, mudei-me do Alentejo, voltei a Lisboa, para esta casa onde só tenho os livros de que preciso para o que estou a escrever, e os livros de Herberto, sempre os livros de Herberto. Desde que fui morar para o Brasil é isto, Herberto foi sempre na mala. Deixei dez mil livros em Alfama, mas os de Herberto foram morar no Cosme Velho, no meio dos macacos, dos tucanos, dos mosquitos do dengue, à mercê do mofo, incluindo O Amor em Visita, aquela edição frágil, sempre guardada dentro do envelope vermelho em que a recebi, com uma janelinha recortada para deixar à vista a palavra amor, a primeira, a única.

3. Só estive com Herberto uma vez. O Manuel Hermínio Monteiro apresentou-nos daquela forma que ele tinha de tornar tudo natural, a Alexandra ainda não conhece o Herberto? E o Herberto afável, falando disto e daquilo, já não me recordo, sei que pensei, o Herberto, que afável. Não havia reverência. Claro que dava medo, mas o medo era meu. Anos depois, eu voltara de viagem, ainda no tempo em que as pessoas deixavam mensagens de voz nos telemóveis, e, ao descer as escadas do prédio ouvindo as mensagens desses dias em que estivera fora, quase caí ao ouvir, fala Herberto Helder, não havia engano, aquela voz grave do disco da Phillips, eu chegava da Índia e aquilo parecia vir de outro planeta, como assim Herberto estava dentro do meu telemóvel? Tal como, das poucas vezes que ia a Cascais, pensava que voltando à direita seria a rua de Herberto, e como assim ele morava já ali adiante? Depois, daquela vez que fui à Madeira, a primeira, com o Manuel Hermínio Monteiro e o Enrique Vila Matas, fomos visitar o presépio do bisavô do Herberto, numa cave da família. Era a célebre Lapinha do Caseiro, de que a Assírio & Alvim veio a fazer um livro. Entre todas aquelas figurinhas esculpidas a canivete, havia uma fotografia do bisavô de Herberto, parecia o Tolstoi. E um dia, em Lisboa, chegou-me A Faca Não Corta o Fogo com uma dedicatória que ocupava uma página, Herberto falava de Inês de Castro e dos árabes, foi como se um monólogo passasse a diálogo. Ele estava do lado de lá. Depois, o Ofício Cantante chegou-me com outra mensagem sobre nos acharmos próximos a Oriente e Ocidente. Ele lia jornais, lia livros, falava ao telefone, morava num prédio. Ele continuava do lado de lá.

4. Entre os livros que levei para o Rio de Janeiro, havia, por exemplo, A Apresentação do Rosto que o Vítor Silva Tavares editou na Ulisseia e Herberto retirou da sua obra, mais do que um amigo brasileiro a leu aqui e ali, todos praticantes da psicanálise. Havia os Passos Em Volta, que tem o “Teorema” do ponto de vista do assassino de Inês de Castro, a primeira edição, presente do mesmo amigo de O Amor em Visita, e a segunda edição presente de uma querida amiga minhota porque pertencera a um irmão. Ou o Cobra, que outro amigo querido me deu, e pertencera ao pai. Mas foi O Amor em Visita que lemos certa noite, na íntegra, na selva do Cosme Velho, uma mesa de amigos portugueses e brasileiros, no meio dos quais um par de noivos, aquela brochura passando de mão em mão, capaz de todos os sotaques, inaugurando a audácia, o jovem Herberto que aos 80 anos haveria de escrever travesti brasileiro, dote escandaloso, leio, venha ser minha fêmea.

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alfredo cunha

5. Os livros de Herberto foram os únicos que levei assim de casa em casa, com uma passagem pelo interior de Minas Gerais, 40 dias. E o primeiro livro que li na casa onde agora escrevo foi enfim A Morte Sem Mestre, porque já passara o ruído, era o momento. É assim que Herberto aparece em todos os livros que escrevi, a propósito disto ou daquilo, do Oriente Próximo ao México, do Brasil ao Canidelo, com manguito, sendo caso disso. Aparece porque estava lá, sempre a andar de um lado para o outro, como um cigano, ou uma pedra dos druidas, e anda. Achei o título do meu primeiro romance em Edoi Lelia Doura, a antologia que Herberto fez de poesia portuguesa. Uma das traduções possíveis dessa frase é “e a noite roda”.

6. Em alguns livros de Herberto, por exemplo, Photomaton & Vox, escrevi como em folhas brancas, mais do que notas, um caderno, mas hoje não quero abri-los, reler o que escrevi e o que já estava lá, e de cada vez parece pôr-se em movimento. A cada ano dei por mim a começar o ano com aquele aviso que Herberto escreveu numa entrevista há quase 50 anos, o de que há que estar disponível para desiludir as expectativas porque desiludir é garantir o movimento e ninguém viverá a nossa aventura por nós. A obra de Herberto tem esta força de resistência única, mil vidas convergindo para um núcleo, ou a possibilidade ilimitada de uma vida. Vemos nele o mistério no limite do humano, é um acontecimento, um antes e depois. Nenhum outro escritor, que eu conheça, teve este impacto orgânico na vida de leitores portugueses. Talvez por isso o que a sua morte liberta seja uma gratidão maravilhada por Herberto fazer parte da aventura de cada um, por termos estado vivos ao mesmo tempo, por ele ter vivido tanto por nós, e cada um com ele. Que cada um faça a sua despedida e siga, livre.

7. O António manda uma mensagem a dizer, o amor revelado vasto além da matéria. Convoca-nos para lermos juntos, bebermos juntos, no caso dele as duas acções são a mesma, bebeu todo o Herberto, tem-no literalmente dentro. Esta nossa terça-feira divide o tempo, momento do frente a frente, de tomar o peso ao que recebeu, a tudo o que Herberto liga. António está a beber mezcal quando chego, a um canto uma das irmãs lê um texto do primeiro livro que o António teve, e era do irmão, 1990, diz a data. O Nuno já não lê, bebe, a Joana ouve, o anfitrião de todos nós tem A Morte Sem Mestre junto ao mezcal. Nunca chegámos a tomar um café, caro Herberto, e contam-me que só bebia café, quando ia ali às tascas da Misericórdia, das Escadinhas do Duque. O amigo que hoje decidiu apanhar um comboio para estar mais perto de si amanhã contou-me que a rua que dali desce se chamava Rua do Mundo. Também disse que o tempo continua onde o Herberto continua. Mas é a isso que estou a chamar amor.  

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