O amor como luxo ou como sacrifício

Thomas Ostermeier em dose dupla no Festival de Almada.

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A Gaivota, de Anton Tchékhov ARNO DECLAIR
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Susn, de Herbert Achternbusch ARNO DECLAIR

A tentação é grande, já que os dois espectáculos do encenador alemão Thomas Ostermeier estão no mesmo Festival de Almada, de ver a encenação de Susn, peça de Herbert Achternbusch, como uma sequela da encenação de A Gaivota, de Anton Tchékhov. Susn é a outra pronúncia de Susana, personagem que vemos de dez em dez anos, e que ficamos a conhecer através de cinco solilóquios diferentes — um dos quais contra um escritor mudo, que bem podia ser o futuro Treplev ou o antigo Trigorin. Com eles podemos imaginar o que teria acontecido a Nina, a Masha, a Polina ou a Arkadina se fossem a personagem singular de uma peça bávara escrita em 1980, além do grupo de mulheres tragicómicas, prestes a bater asas e voar, do texto que Tchékhov via como uma comédia e que escreveu na Rússia imperial da década de 1890.

Os textos do repertório dramático ocidental que Ostermeier tem montado sistematicamente dialogam uns com os outros também pelas fantasias que despertam, formando um todo maior do que a soma das partes. A selecção de peças que o director artístico da Schaubühne (no cargo desde 1999) leva e levou à cena, secundado por dramaturgistas que adaptam e actualizam as obras, tornou-se um cânone para os teatros europeus do nosso século. Ver estes espectáculos é rever a origem das escolhas de reportório dos nossos teatros, encenadores, actores e espectadores. Nesse sentido, a experiência é também a de pertença a uma comunidade de estetas — e de diálogo através do tempo e do espaço com outros autores e outros espectadores e outras histórias políticas.

Associado ao cânone do reportório de Ostermeier, vem o estilo, que também se tornou um modelo: falas à boca de cena para microfones, câmaras de vídeo manipuladas pelos actores, projecções na tela de fundo, canções emblemáticas, já para não falar no vinho, no leite, no mel, etc., invariavelmente vertido sobre os actores. No começo de A Gaivota, há precisamente uma imprecação contra esses truques comerciais da dita forma pós-dramática, feita — ironicamente — ao microfone. E o cenário de Susn ameaça tornar-se outra montra de efeitos, preparado como está com microfones, tela e até uma antiga máquina de jogo. Tudo se passa como se fosse obrigatório amplificar. Para quê?

O encenador trabalha as peças como texturas musicais e os actores como intérpretes vocais, o que determina a forma teatral de modo abstracto, por um lado; mas fá-lo ancorando esse movimento em situações dramáticas reais, de onde se extraem as atitudes das personagens, cujos conjunto e confronto dão corpo à cena, tornando-a concreta, por outro. Para isto concorrem figurinos, cenário, luz, som, imagem, tudo. A ampliação das imagens e a amplificação da voz e do som envolvente fazem parte dessa orquestração musical do universo ficcional de cada texto. À cabeça deste exército de elementos cénicos surgem os actores, em pleno uso das suas capacidades, dominando as falas e intenções das suas personagens, fazendo a dramaturgia realizar-se no sentido próprio. Dependendo da peça, o processo tem resultados diferentes. A sensação de completude gerada pelo método, porém, é a mesma nestes dois casos. A Gaivota e Susn são encenadas com uma tal maestria que reforçam a ideia da encenação como uma linguagem artística autónoma das demais práticas teatrais.

Estabelecida a maestria da disciplina teatral como condição básica para a contundência dos espectáculos, que mostram estas duas peças? As tentativas de rejeição da religião oficial, por parte de Susn, não só são em vão, como reforçam a ideologia, uma vez que são feitas nos termos dela. Ao tentar sair do culto denunciando a hipocrisia dos praticantes, ainda se está dentro do culto. A tragédia da personagem é que o seu desejo de liberdade sexual não tem como se expressar. Certamente por isso a personagem evolui para falar no dialecto mais próprio, mas dentro da igreja de onde queria sair. Autor e encenador parecem encarar esse destino como inexorável.

A técnica de oposição das personagens em A Gaivota mostra como, no final do século XIX, aquelas figuras fazem dos outros autênticos fetiches, transformando a coisa amada em coisa propriamente dita, isto é, em objecto de consumo. A fama, alcançada ou não, pelo par de escritores (Treplev e Trigorin) e pelo par de actrizes (Nina e Arkadina), é a moeda corrente, ou pelo menos o crédito, sem a qual as personagens se atiram para a miséria. A crítica dessa mercantilização da arte e do afecto é feita desde o início, com as tiradas explícitas contra o teatro pós-dramático, e ao longo da peça, com o modo como é interpretada a impossibilidade de amar assim. O lugar do encenador no contexto da produção teatral contemporânea, e o modo como determina os padrões da dramaturgia e da encenação, põe essas críticas em perspectiva. Talvez por isso A Gaivota acabe com uma bola de espelhos a iluminar toda a plateia. A festa — não a luta — continua. <_o3a_p>

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