“Num continente como África, a arte é necessariamente política”

O coleccionador congolês de arte contemporânea Sindika Dokolo, que esteve no Porto para inaugurar a exposição You Love Me, You Love Me Not, pede aos artistas africanos que critiquem e “mexam onde dói”, mas sem assumirem a perspectiva dos que olham para África de fora.

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Sindika Dokolo recebeu, este ano, a medalha municipal de Mérito, Grau Ouro Maria João Gala
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A empresária angolana Isabel dos Santos na inauguração de You Love Me, You Love Me Not Fernando Veludo/NFactos
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Sindika Dokolo na quinta-feira à noite, no Porto Fernando Veludo/NFactos
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O coleccionador com a mulher, Isabel dos Santos Fernando Veludo/NFactos
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Isabel dos Santos na inauguração Fernando Veludo/NFactos
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Maria João Gala
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O coleccionador entre duas das obras escolhidas pelos comissários portugueses: Suzana Sousa e Bruno Leitão Maria João Gala

Sindika Dokolo, um dos maiores coleccionadores africanos de arte contemporânea, esteve no Porto para acompanhar a inauguração, na Galeria Municipal Almeida Garrett, de You Love Me, You Love Me Not, a exposição que os curadores Suzana Sousa e Bruno Leitão organizaram a partir do vasto acervo de obras reunido por este congolês-dinamarquês-angolano.

Casado com Isabel dos Santos, que esteve presente na inauguração, Dokolo é também um assumido homem de negócios, mas a sua paixão é mesmo a arte contemporânea. O pai, um banqueiro e empresário congolês, coleccionava arte tribal africana, e a mãe, dinamarquesa, fê-lo correr os museus da Europa quando era criança. Uma peça de Jean-Michel Basquiat fez o resto. Criou a Fundação Sindika Dokolo, que promove a Trienal de Luanda, cidade onde vive e para a qual sonha com um grande museu de arte contemporânea.

Falou com o PÚBLICO sobre You Love Me, You Love Me Not – centrada na arte contemporânea africana, a exposição reúne meia centena de artistas (nem todos africanos) e inclui nomes como Nástio Mosquito, Samuel Fosso, Cameron Platter, Marlene Dumas, Nick Cave ou Kara Walker – e profetizou que este é apenas “o início de uma história” entre a sua fundação e o Porto, que lhe atribuiu a Medalha de Ouro da cidade. Dokolo, que nasceu em 1972, descreve ainda a sua visão de como a arte pode ao mesmo tempo cartografar e promover a evolução das sociedades africanas. E não exclui que a actual efervescência artística no continente venha a ser vista como a germinação de uma “Renascença africana”.

Esteve na quinta-feira à noite na inauguração da exposição You Love Me You Love Me Not. O interesse que despertou correspondeu às expectativas que tinha?
Foi muito além das minhas expectativas. Para lá da generosidade do acolhimento que recebemos no Porto – sinto-me profundamente honrado por me terem dado a Medalha de Ouro da cidade –, não fazia ideia do interesse que esta janela aberta sobre a arte contemporânea angolana e africana ia provocar. Tanto eu como o pessoal da Fundação [Sindika Dokolo] e os próprios artistas ficámos muito sensibilizados com o entusiasmo do público.

Enquanto coleccionador, presume-se que compra de acordo com um gosto pessoal. Como é que vê esta escolha que os curadores da exposição fizeram a partir da sua própria escolha?
Achei muito engraçado. Foi uma experiência diferente, porque geralmente os processos curatoriais dos nossos projectos são feitos por nós, pelo Simon Djami ou pelo Fernando Alvim [vice-presidente da Fundação Sindika Dokolo], que é artista mas também curador. Como escolhi pessoalmente cada uma destas peças, e as escolhi por paixão, foi muito interessante ouvir os curadores explicar a narrativa da exposição. É um pouco como se as minhas palavras fossem reorganizadas para contar já não a minha história, mas a deles.

Tem insistido na ideia de que é mais um coleccionador de arte contemporânea em África do que um coleccionador de arte africana contemporânea. Mas também diz fazer questão de que a sua colecção tenha um ponto de vista africano. Pode caracterizar um pouco esse ponto de vista?
Cresci na Europa e tive sempre o sentimento de ser o outro, o estrangeiro, e fui muitas vezes vítima de uma certa apreciação que as pessoas faziam do meu contexto, das minhas referências culturais, da minha maneira de ver o mundo. O meu trabalho com a arte foi também uma afirmação, uma maneira de dizer: "Ao contrário do que pensam, eu não sou o que vocês acham que eu sou". Do mesmo modo, um dos objectivos de uma exposição como esta é não tanto dizer o que é a contemporaneidade africana, mas destruir preconceitos, uma certa ideia do que são os africanos, mesmo quando essas ideias resultam de boas vontades e de afectos. E depois lançar sobre o mundo um olhar pertinente, contemporâneo, e que tenha a ver com questões universais. Há uma obra do Samuel Fosse nesta exposição que sublinha com muita elegância e humor o modo como o poder cultural e económico está a transferir-se do Ocidente para o Oriente. O centro de gravidade mundial está de facto a deslocar-se para a China. Ora, nós em África temos um conhecimento da China, de como ela funciona, muito mais completo do que o da Europa. Convivemos com os chineses, a China é para nós uma realidade próxima. Este é um bom exemplo de coisas que podemos afirmar sobre nós e que não são óbvias, que surpreendem.

Interessa-lhe uma arte que de algum modo ajude a ver a realidade?
Queremos que a arte trate temas de actualidade, mas também nos interessa redefinir o modo como ela aborda as questões da sociedade. No Ocidente, a arte vive muitas vezes no seu mundo um pouco isolado do resto da vida. Em África temos a sorte de ter uma arte com muito maior impacto na vida social. Foi o caso, por exemplo, da África do Sul nos anos 90, com a nação arco-íris, ou em Angola neste período do final da guerra e do pós-guerra. A expressão artística entre nós é muito mais do que só uma leitura estética, entra no debate cultural, social e político, e isso torna-a mais relevante e mais interessante. Há três aspectos que tentamos explicar a quem não conhece o nosso trabalho. 1) Não sou quem tu pensas que eu sou; 2) Em questões universais tenho um ponto de vista que merece ser considerado tão pertinente como qualquer outro; 3) nas questões que têm a ver com o meu continente, e para as quais o resto do mundo olha de fora – o estatuto da mulher nos países africanos muçulmanos, a questão da democracia, a questão da sociedade civil, os equilíbrios geopolíticos, etc. –, temos a ambição de retomar uma certa forma de autoridade, de dizer: "Muito bem, ter o seu ponto de vista é interessante, mas eu, que estou mais contextualizado, tenho um ponto de vista mais pertinente." É preciso inverter essa perversão que leva a nossa opinião pública a ler os seus próprios contextos através dos olhos de pessoas completamente alheias a esses contextos. O que dizemos aos artistas é: "critiquem, critiquem, mexam onde dói, mas por favor façam-no com o vosso próprio ponto de vista."

A sua colecção já foi mostrada em Angola?
Para mim é um princípio: não podemos ser mais fortes fora do que dentro. A colecção faz sentido no seu contexto africano, e é ele que lhe dá relevância. Foi mostrada nos projectos que antecederam a primeira Trienal de Luanda, em 2007. E muitos artistas que estão nesta exposição e que têm hoje grande reconhecimento começaram a trabalhar connosco, emergiram ao mesmo tempo que nós, foi um processo feito em conjunto. Lembro-me de uma performance que fizemos com o Nástio Mosquito, em 2003 ou 2004, que metia um Cristo cercado de tinta preta e com coisas um pouco obscenas escritas à volta, e de ter pensado: isto não será demasiado difícil para um público que nunca foi confrontado com propostas tão contemporâneas? A verdade é que sucedeu o contrário. As pessoas envolveram-se com uma grande naturalidade. Acho que o facto de não existir uma tradição de exposições em Angola tornou isso menos complicado. Faz lembrar o que se passou nas telecomunicações, no final dos anos 90, quando se lançou o projecto da Unitel: os engenheiros angolanos debatiam se não seria necessário, num país completamente destruído pela guerra, ter primeiro linhas fixas, antes de se avançar para os telemóveis. O que se concluiu é que quem já estava habituado à rede fixa tinha muito mais dificuldade em tirar partido da nova tecnologia. Nós fizemos o mesmo na arte: começámos com obras difíceis.

É um coleccionador, quer abrir um museu em Luanda para a sua colecção, um centro de arte contemporânea, e as suas ambições de mudar a sociedade não destoariam num responsável político. Como é que lida com essa sobreposição de papéis com lógicas diversas?
É preciso esclarecer que sou apenas um observador, um comentador, mas com uma conjugação de factores que dá mais força à minha voz. Não faço política, mas tenho um posicionamento que privilegia a ética, a moral e a política. Num continente como África, que precisa de recuperar a sua autoridade, a arte é necessariamente política. Não posso dizer: "vou-vos mostrar peças bonitas" e visitar convosco esta exposição como se fosse uma exposição de egiptologia. Estas obras não são só uma proposta estética, vêm de um contexto tenso, e intenso… E necessariamente político.

Na sua relação com as grandes instituições do mundo da arte, estabeleceu a regra de que só empresta obras para exposições na condição de que quem as solicita leve a exposição em causa a um país africano, seja ele qual for. Esse princípio da reciprocidade, como lhe chama, já teve resultados?
Teve no âmbito da Trienal de Luanda, mas não escondo que é das áreas em que temos tido menos resultados. O problema é que, tirando a África do Sul, não há infra-estruturas, não existem museus em África com capacidade para acolher grandes exposições. Mas fiz dessa questão um cavalo de batalha porque era fundamental colocar no centro do relacionamento com as instituições do mundo da arte esse princípio da consideração do outro.

E parece-lhe mais urgente mostrar aos africanos a arte africana ou dar-lhes a ver a arte ocidental?
As duas coisas são importantíssimas, mas sem infra-estruturas é mais fácil promover a exposição de artistas africanos. E essa é também uma responsabilidade nossa. Não posso responsabilizar os outros quando eu, que tenho a possibilidade de mudar as coisas no meu país não o faço.

Quando fala do seu país está a falar de Angola?
Falo como se África fosse um país. Nasci no Congo, cresci em França, vivo em Angola e a minha mãe é dinamarquesa. A minha identidade é muito complexa e plural, mas ao mesmo tempo é claramente africana. Na geração dos nossos pais as coisas eram mais claras, porque a injustiça do sistema racista era tão óbvia que se tornava fácil não o aceitar. Hoje os campos de batalha são mais subtis e é difícil ao jovem africano encontrar uma actividade social, cultural ou política em que sinta estar a fazer algo de útil, para lá do seu interesse próprio.

Essa sua identidade plural reflecte-se na própria colecção.
Acho que seria preciso uma sessão de psicanálise para responder a isso, mas imagino que sim.

Além do gosto pessoal, que critérios orientam a colecção? Há nela, por exemplo, núcleos temáticos ou outros?
Temáticos, não há. E o primeiro critério é que não compro nada que não tenha validado do ponto de vista estético e intelectual. Ou seja, de que não gosto. Mas o meu sentido de responsabilidade obriga-me a pensar que tenho de estruturar a Fundação de modo a que esta tenha uma solidez que ultrapasse as nossas individualidades. Depois da nossa morte, é importante que o que deixarmos seja inteligível e acessível. Estamos a tentar construir a colecção em torno de vários pilares: Angola, que tem uma grande visibilidade histórica nesta exposição, é um deles. Está aqui o Vitreix, está o mestre [Paulo] Kapela, e ando a reunir uma enorme colecção de obras de Fernando Alvim, que continua a trabalhar como artista de forma secreta. Outro objectivo é tentar dar testemunho fiel de um momento, de um estado de espírito, de uma questão relevante num determinado período de um país, de uma região ou de todo o continente africano. Por exemplo, a questão de como os africanos vivem e aceitam, ou rejeitam, a homossexualidade, ou a situação das mulheres nos países muçulmanos. Quero que a colecção seja também uma cartografia da evolução da sociedade africana.

Voltando atrás, como é que se desenvolveu o seu gosto pela arte contemporânea?
Foi o resultado de uma exposição muito precoce ao mundo da arte. Em criança, a minha mãe levava-me aos museus todos, e eu, claro, queria fugir, mas ela intuía que era importante plantar essas sementes. E na adolescência, quando já me tornara um terreno fértil, a grande revelação foi a descoberta de Jean-Michel Basquiat. Vi uma tela dele, Pharynx, que resumia completamente as coisas que eu sentia, e que tinham a ver com identidade, energia, revolta, sexualidade, coisas muito íntimas que estavam ali reunidas numa forma de expressão límpida. Foi uma epifania. Essa obra esteve depois exposta no pavilhão angolano da Bienal de Veneza de 2007.

E na última edição (2013) o pavilhão angolano venceu o Leão de Ouro. Foi um momento decisivo de afirmação internacional da arte angolana?
Foi muito importante, do ponto de vista histórico, esse reconhecimento da qualidade e relevância das propostas dos artistas africanos. Mas claro que a corrida só começa agora. O que posso dizer é que o novo pavilhão de Angola vai ser realmente angolano, realmente africano e realmente universal.

O seu entusiasmo pela vitalidade da produção artística contemporânea em África já o levou a falar de uma “Renascença africana”. É uma maneira de dizer, ou é a sério?
É preciso mais tempo e distância para se perceber o que é um movimento e o que é apenas um momento. Mas essa aceleração da história que estamos a viver, a invasão e omnipresença de novas maneiras de comunicar, com a Internet, é como um precipitado químico, do qual ainda não sabemos que reacção vai desencadear. Mas a probabilidade é que seja explosiva. São ingredientes muito potentes que estão a ser colocados num espaço muito confinado e que vão produzir com certeza coisas completamente diferentes das que existem.

O vereador da Cultura da Câmara do Porto sugeriu que a cidade poderia vir a acolher um pequeno núcleo da sua colecção. O projecto tem hipóteses reais de se vir a concretizar?
Como disse ao presidente da Câmara, para nós o mais importante é o que virá daqui para a frente. E há várias possibilidades muito concretas e imediatas. Acho que isto é o início de uma história entre nós e a cidade do Porto.

É frequentemente criticado pela sua proximidade com o Governo de Angola e com o presidente José Eduardo dos Santos, de quem é genro. Mesmo a medalha que lhe foi atribuída no Porto criou, como sabe, alguma polémica. Estas críticas são um obstáculo ao trabalho da fundação? E são justas?
Dou muita importância à liberdade de expressão. E não conseguiria ter a relação que tenho com os artistas, honesta e de amizade, se tentasse orientar a sua criatividade. Acho que o debate de opiniões contrárias é a base da vida democrática, e é normal que as pessoas tenham opiniões diversas. Aceito a liberdade de crítica, mas acho que alguns argumentos são falaciosos. Em geral, esses argumentos têm a ver com a percepção de Angola como um país com problemas de corrupção, mas acho que são manipulativos. 

Independentemente do juízo que se faça sobre o papel da elite que tem governado Angola, os números relativos à desigualdade social não são factuais?
É um país pobre destruído pela guerra. Tem desigualdades, mas não sei o que é que isso prova. Com apenas dez anos de paz, como é que isso serve de base para a conclusão de que o problema de África são as elites africanas, que seriam um grupinho de pessoas que só querem destruir os seus países. Acho que essa é uma concepção racista. Há erros estratégicos, há falta de boa gestão, sim. Também há países europeus em crise. Eu sou um homem de negócios e vejo o mundo sem complexos. Quero fazer negócios na China, como quero fazer negócios em Portugal.
 

Notícia corrigida às 15h20: a exposição foi inaugurada na quinta-feira à noite e não no sábado

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