Num casamento de fachada só o filho é real

Atirando-se ao seu primeiro autor clássico na pele de encenador, Manuel Wiborg faz de O Pequeno Eyolf uma peça em que tudo acontece em torno de uma criança ausente. E assim se fala da ruína do casamento numa alta burguesia que mantém as suas convenções a qualquer custo.

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ÁLVARO ROSENDO

Um casal abandona-se a uma fervente cópula enquanto o filho, a uns escassos metros de distância mas longe da sua atenção, cai para o abismo.

Um abismo que serve tanto a queda desamparada da criança quanto a descida ao inferno da culpa e da autopunição a que o casal fica condenado desse segundo em diante. A cena, filmada num sumptuoso slow-motion por Lars von Trier, é acompanhada pela ária de Händel Lascia ch’io pianga, e no caso do filme do realizador dinamarquês as forças da morte e da concepção agem em simultâneo, atraem-se; a culpa torna-se depois uma coisa viscosa, peganhenta, impossível de arrancar à pele. Mas não faltou quem, nessa sequência inicial de Anticristo, reconhecesse a pista de O Pequeno Eyolf, uma das mais discretas peças de Henrik Ibsen, reforçando ainda mais a percepção de que von Trier segue pistas que o inscrevem na tradição dos grandes dramas morais do teatro nórdico assinados por Ibsen ou Strindberg.

Em O Pequeno Eyolf, a criança não morre (de imediato). O desabamento da vida familiar de Rita e Alfred não sucumbe ao mesmo violento desespero que em Lars von Trier faz com que o remorso insuportável do passado sufoque o prazer do futuro, mas funciona de acordo com um ritmo mais daninho, mais perverso até, num certo sentido. Rita e Alfred são puxados para o abismo, mas a queda não lhes é permitida num só movimento. Se Eyolf é deixado sem guarda em cima de uma mesa para que os pais se amem despreocupadamente, a queda debilita-o e faz dele um aleijado com marcas físicas expostas o suficiente para que aos pais nunca seja permitido esquecer a sua negligência. Para se refugiar da culpa, aliás, Alfred desaparece durante um longo período para as montanhas, a pretexto de escrever uma obra intitulada Responsabilidade Humana – muito simbolicamente, não a concluirá. E aí começa também a instrumentalização de Eyolf. No regresso da sua falência artística, Alfred invoca a sua decisão de se sacrificar em favor da educação do filho como razão para o abandono da sua obra-prima. Rita, por seu lado, encosta-se à criança coxa para justificar a ruína do casamento.

Quase sempre ausente, Eyolf é na encenação de Manuel Wiborg, de 19 a 25 de Março no Teatro São Luiz, em Lisboa, um fantasma que nunca deixa o palco. “Dizem alguns analistas que todas as peças do Ibsen”, realça Wiborg, “são habitadas por espectros, são cenários onde os fantasmas que as personagens convocam vêm contracenar com eles”. Centro da acção sem que fisicamente o ocupe, Eyolf surge por breves instantes como um boneco manipulado, sem rosto, sem corpo, já desaparecido antes sequer de ser tragado pelas águas enquanto os pais, desta vez, discutem. No olhar do encenador, a peça é operada como um negativo: “Estamos a tratar a criança como algo artificial mas, no fundo, é a única coisa que aqui é real. Todas as convenções em que eles vivem é que são aparências. Vivem um casamento de fachada e na própria relação entre irmão (Alfred) e irmã (Asta) há um amor carnal dissimulado que, vemos mais tarde, não se pode concretizar. Só a criança é pura e real no meio disto tudo.”


Ampliados e exagerados
Tendo passado ao lado do filme de Lars von Trier, Manuel Wiborg descobriu o texto de O Pequeno Eyolf no primeiro de quatro volumes de Peças Escolhidas, editados pela Cotovia desde 2005. “Adorei a peça logo que a li em 2007 e pensei logo em produzi-la, mas estava a fazer outras coisas”, conta. Enquanto encenador, foi trabalhando em textos de Jacinto Lucas Pires ou José Maria Vieira Mendes, assim como montando adaptações de obras literárias de Dostoiévski e Gonçalo M. Tavares. Mas nunca antes tinha ousado meter as mãos num clássico. O Pequeno Eyolf é o seu baptismo, querendo depois encontrar espaço para dirigir O Tio Vânia, de Tchékhov, O Misantropo, de Molière, e O Despertar da Primavera, de Wedekind. Na peça de Ibsen foi atraído sobretudo pela falência do casamento e pelo matrimónio como impulso para a ascensão social. Mas quis também contrariar uma tendência que identifica no teatro português desde a deflagração da crise. “Chateia-me um bocadinho, desde 2007 ou 2008, quando começaram os tempos de crise, aquela coisa que se instaurou de ‘estamos muito mal, bora lá fazer peças de entretenimento para rirmos um bocado e nos esquecermos disto’”, desabafa. “Não acho que o teatro tenha essa função. Desde a Grécia que o teatro é um espaço político por natureza. Acho que esta peça mostra isso – os podres da nossa sociedade, a possibilidade de redenção das personagens, e acho que é disso que devemos falar.”

Manuel Wiborg quer, por isso, procurar o peso, chafurdar numa tragédia para que possa modificar, um pouco que seja, o seu espectador. Aquilo que se propõe com O Pequeno Eyolf não é “fazer pensar porque o pensamento é livre e as pessoas pensam aquilo que lhes der na real gana”. O que Wiborg quer é que o texto e a sua encarnação em palco esmaguem o público, imponham um silêncio grave e sacudam quem assiste. Quer, no fundo, que cada um seja capaz de se ver “mais ampliado e exagerado”, neste burburinho de casamento desgastado, de manutenção a todo o custo de uma imagem sacrossanta da família no seio da alta burguesia e de educação castradora com um destino pré-definido pronto a enfiar pela goela da criança abaixo. “Alfred quer que Eyolf leia livros e termine a sua obra, mas o filho quer ser soldado”, comenta Wiborg. “Ele não respeita a criança, apenas projecta o seu egoísmo, algo que me parece um lugar-comum na sociedade judaico-cristã. São estas coisas verdadeiramente humanas que me tocam.”

Esse egoísmo grassa também em Rita. Ela, que empresta a sua condição social a Alfred, sugere a Asta, pretensa irmã do seu marido, que tome o lugar de Eyolf na família para preservar uma qualquer dinâmica retorcida e arreigadamente disfuncional. Mas Asta, aquela que mais afectos dedicava ao miúdo, é salva desse abismo que Wiborg coloca de facto no espaço ao localizar o acto final junto a um fiorde, perto do precipício. Asta escapa-se por acção de Borgheim, “uma figura diferente de todas as outras, um homem pragmático, um construtor, um engenheiro, que tem por função abrir caminhos e ligar o que está desligado”. E assim, quando estes partem, Alfred e Rita ficam entregues um ao outro e obrigados a lidar com o imenso vazio da queda. O vazio deixado por Eyolf, mas sobretudo o vazio que escavaram entre os dois.

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ÁLVARO ROSENDO

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