Nova sede da EDP: a síntese de um enigma

Com uma escala singular e uma forma abstracta controlada até ao limite, o edifício da nova sede da EDP demonstra como o rigor da arquitectura é fundamental para trazer novas qualidades à cidade.

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Rui Gaudêncio

Não há muitas obras assim. O edifício da nova sede da EDP, projecto do atelier Aires Mateus, foi uma obra singular num tempo de crise. Grande, muito grande, o projecto estava sujeito a contingências de vários níveis. No limite, poderia ser apenas mais um edifício de escritórios, mas não é. A ambição de redenção ambientalista do sector da energia poderia ter feito da obra uma paródia tecnológica, mas não fez. As condicionantes urbanísticas do aterro da Boavista poderiam ter levado a uma solução de compromisso, mas não levaram. As necessidades funcionais do programa poderiam ter tido um impacto negativo na solução, mas não tiveram. Apesar da dimensão, a obra não é um monumento que se impõe, mas uma estrutura complexa que procura uma relação natural e pacífica com a cidade e os seus habitantes. Ao invés de serem pensadas pela negativa, estas e outras contingências serviram para alimentar uma solução integrada em que o desenho dos arquitectos predomina para construir um terreno comum a todas (ou quase todas) as necessidades. O resultado é inquietante, e só o tempo dirá qual vai ser a reacção da cidade a este novo marco urbano. Por enquanto, prevalece a forma da arquitectura.

Uma obra para a cidade
A frente ribeirinha de Lisboa está em transformação, da Ribeira das Naus ao Museu dos Coches há novidades que se sucedem e cumprem a promessa de uma nova relação da cidade com o Tejo. A poente do Cais do Sodré, no Aterro da Boavista, os edifícios avulsos construídos ao longo do século XX e as antigas construções portuárias estão a ser recuperados e reordenados na expectativa de desenvolvimento urbano num futuro próximo. A peça central desse processo é a nova sede da EDP, projectada para acolher 750 funcionários hoje dispersos em vários escritórios. A partir das linhas de boqueirões perpendiculares à costa, onde antigamente acostavam os barcos, foi concebida uma volumetria serena que conforma uma praça interior.

O lote é um trapézio integralmente ocupado por dois blocos de escritórios elevados nos extremos Nascente e Poente (do piso 1 ao piso 7), articulados por duas galerias que delimitam os extremos Norte e Sul de uma praça aberta (piso térreo) para a Rua Dom Luís I e Avenida 24 de Julho. Por baixo da praça, profusamente iluminado por pátios, existe um piso de auditórios e espaços colectivos sob o qual se escondem quatro pisos de estacionamento subterrâneo. Tudo gira em torno do espaço singular da praça: é possível atravessá-la entre as ruas, é da praça que se acede aos escritórios através de duas escadarias que descem ao piso inferior (que conecta os dois blocos e de onde partem os elevadores de distribuição); e na praça existem também um restaurante e uma loja de serviços que oferecem funções complementares. Este espaço público tem uma atmosfera singular gerada por uma grelha de sombreamento e pelas galerias de ligação dos escritórios sob as quais se acede à praça. É um espaço aberto que parece encerrado, um espaço coberto que afinal é descoberto, tem uma dimensão contida mas não deixa de ser amplo, enfim, é a síntese de um enigma.

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Rui Gaudêncio

A galeria que liga os blocos de escritórios, particularmente na frente da Rua Dom Luís I, dá coerência à escala do novo edifício no contexto dos antigos armazéns e outros vizinhos. A forma como o volume se dobra do chão para dar entrada à praça (uma forma eventualmente estranha ou, pelo menos, inusitada) garante alguns pontos de referência entre a dimensão humana dos transeuntes e a materialidade da construção. Do lado da Avenida 24 de Julho, mais frequentada pela velocidade do automóvel, destacam-se os topos dos blocos de escritório, a ritmar a visão entrecortada do panorama urbano. A perspectiva mais polémica, e talvez a mais interessante para observar o edifício, tem-se do alto de Santa Catarina de onde é perceptível a clareza da massa construída que se funde nos reflexos do Tejo. Entre as várias perspectivas, prevalece a forma branca, abstracta, unificada pelas peças pré-moldadas do revestimento que, dependendo do ângulo de visão, se desvanecem na superfície de vidro da fachada. Se no contacto directo a forma se oferece à cidade para um uso prático e descomplexado, à distância o edifício autonomiza-se e transforma-se numa peça singular.

O projecto como um quebra-cabeças
O edifício foi construído como uma gaiola em estrutura metálica assente sobre uma base de betão-armado. Tudo o que está abaixo da linha de terra é em betão, tudo o que se levanta do chão resulta da estrutura metálica. Tratando-se da sede de uma empresa do ramo energético, o comportamento ambiental da construção foi outra premissa basilar na sua concepção: para dar resposta a essa ambição optou-se por uma solução de fachada-cortina, em vidro de alto desempenho, sobre a qual assentam sombreadores pré-moldados em cimento reforçado com fibras (GRC). O ângulo de incidência solar determinou a inclinação dos sombreadores, que percorrem toda a fachada e coberturas para unificar a forma. Os sombreadores tornam invisível a estrutura metálica, esbelta, à qual estão fixos e cuja métrica corresponde a um múltiplo da modulação de 60 centímetros determinada pelas medidas padrão do mobiliário interior dos escritórios. Ao contrário de edifícios modernos convencionais, em que a estrutura está no interior e a fachada não tem função de suporte, neste caso é a fachada que recebe as cargas dos pavimentos. Os pavimentos são complexos e cada nível contém as infra-estruturas técnicas no tecto inferior, a estrutura do piso, e mais infra-estruturas no chão do piso superior, de tal modo que a sua espessura desaparece entre infra-estruturas e não tem expressão horizontal na fachada. Imagine-se um piso muito espesso, mas cuja materialidade é extraordinariamente ligeira, uma vez que a espessura é constituída pela parafernália técnica, uma espécie de vísceras da obra. É essa espessura que permite organizar sobre ela um espaço de trabalho limpo, quase imaculado, em que nada perturba a sua fluidez e clareza. Ao fazer desaparecer as linhas horizontais dos pavimentos, e ao alinhar em todas as fachadas as diagonais dos sombreadores, que por sua vez correspondem à métrica da organização do espaço interior (e ao fazer coincidir mais uma enorme panóplia de detalhes que vou poupar ao leitor), o projecto transforma a expressão da construção numa superfície homogénea que permite dar corpo à forma abstracta do conjunto. Essa abstracção dilui a leitura do número de pisos, aos quais são subtraídos aleatoriamente pátios nos blocos de escritórios, de tal forma que a monotonia da superfície homogénea é sobressaltada por múltiplas variações. As três dimensões dos sombreadores acentuam essa vibração, interpelando constantemente quem observa o edifício. Quantos pisos tem? Por onde se entra? Qual a profundidade? Quais os ângulos das formas?

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Aparentemente normal, ou até simples, a expressão do edifício reflecte a sua complexidade conceptual. Todos os detalhes e problemas técnicos foram sincronizados em função de um divisor comum que absorve potenciais conflitos de forma, expressão ou construção. Como num quebra-cabeças já resolvido, tudo o que aparentemente seria inconciliável está conciliado, de tal modo que não é necessário recorrer às soluções tradicionais da arquitectura — portas, janelas, telhados, etc. — para dar forma à construção. É esse rigor, obsessivo, que permite integrar os milhares de trabalhadores especializados num estaleiro de obra. Os arquitectos chamam a esse rigor Arquitectura. Mas nem sempre é simples garantir a eficiência dessa gestão, sobretudo quando a dimensão da obra aumenta, aumentando com ela a complexidade das soluções e das cadeias de comando. A simplicidade formal da nova sede da EDP esconde o desafio titânico que foi superado: garantir que todas as peças do puzzle encaixassem de modo a parecer que é simples construir um edifício desta natureza.

A escala dos arquitectos
Levada a cabo num momento em que a construção em Portugal esteve praticamente parada, a conclusão da nova sede da EDP tem um significado particular no percurso dos arquitectos Aires Mateus. Desde há vários anos que estes arquitectos são nomes promissores no panorama da arquitectura internacional. Premiados e aclamados, não tinham até hoje uma obra com a dimensão e a escala deste novo edifício. Entre as suas primeiras obras, no furor construtivo dos anos 1990, contam-se vários edifícios públicos significativos, das quais se destacou o Centro de Artes de Sines. Com o abrandamento da construção em Portugal, a maioria dos seus projectos passou para a escala da moradia e da habitação, onde a menor complexidade técnica permitiu explorar soluções muito abstractas, em que a linguagem da arquitectura se reduziu à oposição entre volumes, cheios e vazios, massas enigmáticas que conformam espaços de habitar sedutores. Essa depuração formal, que confirmou o seu sucesso internacional, não tinha ainda sido testada em edifícios de maior porte. Ou seja, a obra da EDP é um momento de charneira no percurso dos arquitectos em que se joga o êxito, ou o fracasso, de uma cultura de projecto até agora desenvolvida e experimentada em pequena escala. Será que a abstracção das pequenas casas aguenta a dimensão de grandes edifícios de uso público?

A arquitectura de Aires Mateus caracteriza-se por formas puras cujo rigor se inscreve naquilo que se designa como arquitectura de autor. Há uma linguagem própria, um método e um processo de trabalho que conduzem a formas únicas e singulares, apenas possíveis graças a um longo processo de maturação individual em torno do saber colectivo da disciplina arquitectónica. Depois da celebração do star system nos últimos anos as arquitecturas de autor têm sido alvo de críticas duras, em particular as formas espalhafatosas (e habitualmente muito onerosas) da arquitectura-espectáculo. Aires Mateus inserem-se nessa linhagem de autores do estrelato internacional, mas numa vertente de formas serenas e aparentemente racionais. Como num paradoxo, a sua arquitectura é feita de simplicidade aparatosa. Numa obra com a dimensão da nova sede da EDP, o risco é que esse aparato se sobreponha à realidade e provoque danos colaterais em funções fundamentais para o uso dos edifícios. Ao contrário de uma habitação unifamiliar, a sede de uma das principais empresas do país tem um impacto e exigências que não se compadecem com certos desejos de arquitecto. Por isso é que o quebra-cabeças tem de ser bem resolvido, tudo tem de bater certo segundo a lógica interna do projecto. Só essa eficiência é que consegue fazer emergir a obra e desaparecer o autor, para que a arquitectura se possa afirmar sem conflito. Ou seja, para que a arquitectura-espectáculo não viva do espectáculo mas possa viver da qualidade da arquitectura. E, como neste caso, para ser possível devolver à cidade um espaço qualificado para usufruto de todos.

Com a obra da nova sede da EDP já em andamento, os arquitectos conquistaram encomendas internacionais importantes, desde a Mesquita de Bordéus até ao muito recente projecto de concurso para o Museu da Fotografia do Elysée e Museu de Design e Arte Contemporânea (Mudac) em Lausanne. Ultrapassado o teste da primeira grande obra pública, tudo leva a crer que a nova sede da EDP é apenas o princípio de uma nova etapa na carreira de Aires Mateus. É uma arquitectura sóbria, eficiente, generosa na sua relação com a cidade, e cujas formas enigmáticas são capazes de nos interpelar a propósito do nosso próprio destino.

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