Nostalgia e celebração

Quartet é uma celebração da vida pós-trauma, nostálgica e consciente do efémero, que é comedida mas segura na manifestação de felicidade.

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Cortesia: Teatro Rivoli Teatro Municipal/José Caldeira
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Bolinhas cintilantes saltitam no palco onde Raimund Hoghe apresenta uma nova peça pela segunda vez ao mundo. Quartet celebra a sua carreira de 20 anos - que é de luta contra a norma e a resignação - e é também uma homenagem a quem foi essencial e ao que já foi relevante e hoje parece prescindível.

A reunião comemorativa é sonorizada pela sequência de 40 e poucos trechos musicais (tantas velas!); a mistura de favoritos vai das árias e trechos instrumentais clássicos às canções de amor italianas, a temas populares japoneses e a musicais americanos. São elementos que marcam o ritmo da peça, estimulam acções e inferem referências que os bailarinos apropriam individualmente.

Hoghe, o aniversariante, tem um papel catalisador. Por vezes interrompe a cena instalada e dá-lhe um rumo (como unir todos de braços dados); noutras lidera ou reforça um comportamento colectivo. O anfitrião também marca a evolução da peça com interlúdios simbólicos, ora mais óbvios ora mais enigmáticos: recolhe a roupa de outrem, carrega as flores, traz as toalhitas ou deita-se no chão de cara coberta (uma representação dos falecidos? É provável). A sua presença varia entre o solene, o expedito, o reverencial e o humorista, numa intrigante e interessante sucessão de transformações.

Quartet é uma festa com momentos de experiência partilhada por sete pessoas mas onde cada convidado trará histórias para contar com uma admirável expressão do corpo. Essas vozes individuais exprimem-se a solo ou podem cruzar-se no mesmo espaço e em simultâneo. Os inúmeros segmentos encadeiam bem numa longa corrente sem elos fracos; a noção de continuidade, das vidas ligadas, da passagem de testemunhos, das mudanças cíclicas, instala-se e enfatiza o poder clarificador do tempo a passar: a sensação de sentido e coerência cresce nitidamente durante o espectáculo e a nitidez ajuda a distinguir o que é vida presente do que é revivalismo.

A memória é um conceito operativo que surge de forma literal porque há coreografias citadas como L’Après-midi (2008), Pax de Deux (2011) ou Cantata (2012). Mas também funciona no movimento quando há uma qualidade hesitante que advém da reconstituição da experiência. Ornella Balestra tem um momento áureo quando recorda um port de bras (talvez de Swan Lake, 2005) com um sorriso iluminado que reclama para os braços e a face o centro de beleza; e Emmanuel Eggermont descreve, ao som de Dolores Duran, uma dança lancinante das mãos como que arrancando a dor da cara e o amor do corpo, tentando eliminar a sua memória.

Apesar de um luto assumido nas roupas pretas maioritárias e de um tom introspectivo, esta peça é mesmo uma festa de aniversário - é aqui que reside a sua novidade. Demora, escuridão, diferença, detalhe, depuração, ritual, presença, beleza, música e memória são sempre palavras chave do trabalho assinado por Hoghe. Em Quartet a reincidência é legítima e a manobra convincente. Se no mundo da música surgem amiúde compilações que ponderam e revitalizam o trabalho dos artistas, não pode o mesmo acontecer na dança contemporânea?

Este objecto contrasta numa sociedade que vive ao ritmo do tempo de espera de um download, numa percepção georeferenciada do espaço acessível por SMS e afogada em estereótipos - toda a obra de Hoghe é uma antítese dessa realidade. Quartet é uma celebração da vida pós-trauma, nostálgica e consciente do efémero, que é comedida mas segura na manifestação de felicidade.

 
 


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