“Nós precisamos da fachada dos cinemas”

Os cinemas são o edifício símbolo do século XX, diz Margarida Acciaiuoli, autora do livro Os Cinemas de Lisboa. Das feiras às multi-salas, passando pelas “catedrais”, os lisboetas souberam sempre compreender o cinema. E os cinemas fizeram crescer a cidade. “Como é que hoje encaramos com naturalidade não termos cinemas?”

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Viagem pela história dos cinemas de Lisboa Vítor Hugo Costa (vídeo) e Alexandra Prado Coelho

Combinámos encontrarmo-nos na última das grandes salas de Lisboa: o Cinema São Jorge. Atravessámos o hall, subimos a escadaria, avançámos em direcção às janelas que dão para a varanda sobre a Avenida. A esta hora o bar está deserto e silencioso. A sala de cinema também. É aí, no meio das imensas filas de cadeiras com estofos vermelhos, que se senta Margarida Acciaiuoli para nos falar de como o cinema mudou os lisboetas, e de como os cinemas mudaram Lisboa. Estamos aqui a pensar como é, apesar de tudo, um milagre que esta sala ainda sobreviva e continue a mostrar cinema. Estamos aqui como se já quase não tivéssemos direito a isto, num tempo/espaço roubado ao passado que, só por teimosia, ainda existe no presente.

No dia 23 de Fevereiro de 1950, nesta mesma sala ouviu-se A Portuguesa e God Save the King. Houve um concerto de órgão dado por Gerald Shaw, músico da BBC, e no ecrã estreou-se o filme Os Sapatos Vermelhos, de Michael Powell e Emeric Pressburguer. Foi assim a inauguração do São Jorge, uma das "catedrais" que por essa altura se construíram na capital.

Há uma explicação para o carácter britânico da cerimónia: é que o novo cinema nascia de uma colaboração entre o industrial português João Rocha Júnior e a Rank British Picture Corporation, do magnata J. Arthur Rank, explica Margarida Acciaiuoli, autora de Os Cinemas de Lisboa - Um fenómeno urbano do século XX, editado pela Bizâncio.

"Este local representa a primeira concretização de um edifício pensado exclusivamente para espectáculos de cinema", conta. "Até essa altura era obrigatório, segundo uma lei de 1927, que todos os espaços que se construíam ou adaptavam em Lisboa para espectáculos cinematográficos acolhessem também o teatro, ou até variedades".

E, no entanto, Lisboa era desde há muito uma cidade de cinéfilos. "O público lisboeta talvez tenha sido um dos primeiros na Europa não só a admirar o cinema, ainda quando era mostrado nas feiras, mas a entendê-lo. E isso é extraordinário". Os espaços onde se mostravam filmes estavam sempre cheios. "O cinema trouxe a Lisboa qualquer coisa que a cidade não conhecia e que preencheu uma falta que as pessoas não sabiam possuir".

O pano em vez do espelho

Recuemos então várias décadas até essa Lisboa onde se mostrou, pela primeira vez, o animatógrafo. Foi a 18 de Junho de 1896, conta Acciaiuoli no livro, às oito e quarenta e cinco da noite, depois de uma apresentação à impresa. O público acorreu para ver aquele que era apresentado como "o mais belo de todos os espectáculos" e houve uma invasão da sala, com luta pelos lugares da frente do Real Coliseu, um espaço já desaparecido que ficava na Rua da Palma, e onde se apresentavam companhias equestres e acrobáticas, óperas cómicas, operetas, zarzuelas. E, agora, o cinema.

Os lisboetas renderam-se imediatamente. E aquilo que Margarida acha mais digno de nota é que rapidamente perceberam o que estava a acontecer. Cita um articulista do Diário Ilustrado que resume assim a espantosa novidade: "Num pano em vez de num espelho,/Este engenhoso aparelho, mostra a fotografia em movimento tal,/Reproduzindo as figuras, como vivas criaturas,/mas isto ao natural". E terminava assim: "Eu lá vou hoje aplaudir maquinismo tão falado./Sigam-me todos os povos, vamos ver quadros novos,/Chineses fumando ópio no estanco de procópio...".

Desde essa primeira sessão o Real Coliseu passou a ter a estar sempre cheio, e em pouco tempo Lisboa enchia-se de espaços, mais ou menos improvisados, onde, entre outros espectáculos, o animatógrafo fazia sucesso garantido. Margarida Acciaiuoli cita relatos que falam desse entusiasmo dos habitantes da capital por divertimentos. "Os circos são os espaços que documentam mais amplamente essa situação, com os seus espectáculos de cavalinhos, pantomimas, ginastas e feras, aos quais se juntavam pequenas representações dramáticas, ‘quadros plásticos', ‘dioramas' e o costumado ‘fogo de vistas' com que se encerravam as sessões."

Os espaços tinham nomes sugestivos - havia os Salões, mas também o Jardim Mitológico (em Alcântara), ou o Jardim Chinês, o Jardim de Itália, o Paraíso de Lisboa, ou a Floresta Egypcia, na Rua da Escola Politécnica, um local com "constituído por grandes jardins, pontuados por esfinges e bustos de gesso, com lagos e pavilhões, onde se ofereciam divertimentos variados, desde salas para baile a concertos, passando pela montanha-russa, carrossel, balanças para pesar e balouços".

A grande maioria dos espaços que Acciaiuoli refere no livro desapareceu há muito. Mas a grande sala que vem mudar a forma de ver espectáculos na cidade ainda existe: em 1890 inaugura-se o Coliseu dos Recreios, na Rua das Portas de Santo Antão, onde serão exibidos os primeiros filmes de grande metragem.

É a história desta relação do público da capital com o cinema, mas através dos espaços que foram surgindo para esse fim que Os Cinemas de Lisboa conta. Salas que fizeram parte integrante do crescimento da cidade. "Mais do que qualquer outro edifício, o cinema representa a concretização de um conjunto de aspirações", diz Margarida Acciaiuoli, no meio das cadeiras de estofos vermelhos do São Jorge.

As catedrais

Essas aspirações foram mudando, e os cinemas com elas. Aos teatros-circo com poucas condições sucedem-se salas maiores, mas que serviam ainda tanto para teatro como para cinema. Havia vários "paraísos" e "salões", mas há um que se destaca pela sua fachada Arte Nova: o Animatógrafo do Rossio, que ainda hoje existe, transformado em sex-shop.

Em 1911, inaugura uma sala verdadeiramente "chique": o Chiado Terrasse, na Rua António Maria Cardoso. No semanário humorístico Os Ridículos escreve-se a propósito da nova sala da moda: "Vem gente de toda a parte

da Moita da China e do Japão/para ver as fitas de arte/que se exibem no salão. A modernidade instalava-se.

Logo em 1916, surgem as matinées infantis e as matinées de arte, em que - num modelo que se prolongou até aos nossos dias - se projectava o filme e conversava-se com "figuras conhecidas que eram expressamente convidadas para essas sessões" - Margarida Acciaiuoli recorda que foi António Ferro com a conferência sobre As Grandes Trágicas do Silêncio o autor da primeira grande intervenção pública sobre cinema feita em Portugal. Variações sobre o tema das matinées incluem ainda as "matinées-concertos", as "matinées blanches" e as "matinées elegantes".

A cidade crescia e pedia cinemas mais imponentes. No conto Saudades para D. Genciana José Rodrigues Miguéis descreve a Avenida da Liberdade "nos começos da República" como sendo "novinha em folha como o regime", e onde, entre as casas "modestas e limpinhas" surgiam as "‘terras, lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia ‘reinar', e as carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos carroceiros".

É nessa avenida que surge o Tivoli - "sala com decorações douradas, em estilo Luís XVI", "foyers e salas de fumo" e bilhetes caros (em 1925 custavam entre três e quarenta escudos). Mas estávamos ainda numa estética clássica. As rupturas viriam depois com o Capitólio, no Parque Mayer, do arquitecto Cristino da Silva - a imprensa falava do "estilo modernista", e o edifício tinha até "um tapete-rolante de madeira, que era então novidade absoluta em Lisboa".

E viriam, sobretudo, com a transformação do Éden-Teatro em Éden-Cinema, que provocou acesa polémica por causa da sua fachada cega, sem aberturas, à qual alguns chamaram na época "chapa de mármore, sem explicação possível". Outros argumentavam que um teatro não precisava de janelas. A fachada acabaria por ser aproveitada para os cartazes publicitários, os grandes telões com as estrelas do cinema, que durante as décadas seguintes fariam parte da paisagem da avenida.

Mas, entretanto, em várias zonas de Lisboa nasciam os cinemas de bairro, que, são, para Acciaiuoli, "uma espécie de veículos de sonhos, de promessas". Na Graça, por exemplo, onde está hoje instalado um supermercado, existia o Royal-Cine (1928), iniciativa de Agapito Serra Fernandes, galego e "abastado comerciante da Baixa" que construíra ali ao lado o Bairro Estrela de Ouro para os seus funcionários. Na Mouraria havia o Salão Lisboa (conhecido como "O Piolho" e que é hoje uma loja de revenda chinesa), e em Alcântara o Salão da Promotora - isto só para dar alguns exemplos dos muitos que existiam pela cidade.

Margarida Acciaiuoli considera estes cinemas de bairro um fenómeno muito importante. "Fomos capazes de construir cinemas de bairro em que hesitámos: o edifício devia ser parecido com um teatro ou com uma fábrica? O que tem toda a lógica, se o cinema é uma fábrica de ilusões por que não dar usar essa morfologia a um edifício destinado à projecção de filmes?".

E, continua, "fomos capazes de fazer grandes catedrais". Uma delas é o Cinema-Teatro Monumental, construído no início dos anos 40 no Saldanha. "O ministro da Educação da altura exigiu que o edifício estivesse preparado para receber espectáculos de cinema e de teatro", conta Margarida Acciaiuoli, "mas fez uma exigência completamente absurda, a de que dentro do edifício houvesse salas independentes para cada uma das funções. É por isso que a arquitectura do Monumental difere de todas as outras".

A terceira grande catedral é o Império, projecto de Cassiano Branco, de 1947 (inaugura em 52, e em 64 é criada a Sala Estúdio) - e não podemos esquecer o que representa para a Lisboa moderna o local onde se inseria, a Alameda Afonso Henriques, delimitada pelo Instituto Superior Técnico e pela Fonte Luminosa. "Penso, aliás, que foi pelo estatuto de catedral que atingiu que é hoje um espaço pertencente a uma igreja [a Igreja Universal do Reino de Deus]. Não foi pelo facto de a igreja ter ido para lá que o Império ficou com esse estatuto. Essa ligação, acho-a natural".

E assim aproximamo-nos dos anos 60. É altura de, no livro, Margarida Acciaiuoli abrir um capítulo chamado "Os cinemas na expansão da cidade", que começa com o Cinema Alvalade e a Avenida de Roma. "A história do Cinema Alvalade está intimamente ligada ao bairro que o viu nascer. [...] O primeiro momento remete para o Plano do próprio Bairro de Alvalade, aprovado em 1945, e que se apresentou como uma cidade dentro da cidade, com os seus prédios de aluguer de variado estatuto e de algumas moradias que, no seu conjunto, se destinavam a albergar uma população de 45 mil habitantes", escreve.

Apesar de o Bairro de Alvalade ainda estar em construção e ter pouco movimento, o cinema é inaugurado com o filme O Cangaceiro "realizado por Lima Barreto, que alcançara nesse ano um prémio no Festival de Cannes". O cineasta Lima Fraga apresentou o filme e falou sobre a moderna cinematografia brasileira. "A partir de então, o Cinema Alvalade passa a ser a grande referência do bairro". Nas Avenidas Novas surgem vários cafés, o Luanda, a Suprema, e, sobretudo, o Vá-Vá, que inaugura em 49 e que será ponto de encontro e referência para a nova geração de cinéfilos dos anos 60. No outro extremo da Avenida de Roma, junto à Praça de Londres, surge o Cinema Roma (e a Pastelaria Mexicana). Outros pontos, mais periféricos, de Lisboa ganham as suas salas: o Cinema do Restelo (1959) e a encosta da Ajuda, o Cinema Lumiar (1968) e a Calçada de Carriche.

A pouco e pouco, as salas vão-se tornando mais pequenas - dos dois mil lugares passa-se para os 250. "O Governo acede finalmente a que se possam construir salas em edifícios de habitação e de comércio", escreve Acciaiuoli, "dispensam-se as fachadas, no sentido canónico do termo; reduzem-se as zonas de circulação e de serviços. [...] Adaptam-se espaços livres dentro de outros recintos; recuperam-se caves e subcaves ou aproveitam-se anexos e garagens; e dividem-se as grandes salas que, nos anos 50, se erigiam como verdadeiras ‘catedrais', retalhando-se irremediavelmente os seus espaços". Com isto, "o cinema não voltou a afirmar-se na cidade através da arquitectura".

O Cinema Londres, inaugurado em 1972 aproveitando o espaço de uma cave onde funcionavam um restaurante, uma sala de jogos e uma boîte", foi classificado como "a mais luxuosa sala-estúdio de Lisboa". A grande novidade era o facto de oferecer "três coisas no mesmo sítio: ver cinema na sala, jantar no snack-bar e conversar no Pub the Flag". Nos anos 60 e 70 apareceram novas revistas de cinema, diferentes das revistas das estrelas das décadas anteriores e salas-estúdio, como a que surgiu no Centro Comercial Apolo 70, dirigida por Lauro António, apostavam em cinematografias ainda pouco divulgadas em Portugal, e em 75, num edifício sem história nas traseiras da Avenida Estados Unidos da América, abria o Quarteto, dirigido por Pedro Bandeira Freire, que criou o conceito "quatro salas, quatro filmes", e que passava dois filmes seguidos nas sessões da meia-noite.

Mas desde os anos 60 o cinema vinha perdendo espectadores, e várias salas foram fechando. Uma das decisões mais polémicas foi, em 1983, a da demolição do Monumental. Abrem-se debates sobre o uso a dar às salas onde anteriormente passava cinema.

"O cinema não precisa de grandes salas", diz Margarida Acciaiuoli. "As cidades é que precisam de ter grandes salas e pequenas salas. O que acontece é que hoje só temos um tipo de salas que não são catedrais, são as multisalas. Era preciso mais diversidade. As salas e os filmes estabelecem uma relação no local que também faz parte da história do cinema. E anulando essa história há qualquer coisa que se perde".

A professora e investigadora garante não ser "apologista de manter só por manter". Mas não tem dúvidas de que "se cada século elegeu uma tipografia de edifício, como a fábrica está para o século XIX, o cinema está para o século XX".

Houve séculos em que se construíram igrejas, palacetes, teatros. "São tipologias que atravessam os tempos e fazem com que as gerações de possam reconhecer e até situar. O século XX foi fantástico, diferente de todos e genial porque foi capaz de criar de raiz um novo edifício para uma arte nova. O problema é que como a trepidação do século atingiu níveis totalmente desconhecidos, nós, com essa velocidade, acabámos por destruir o que inventámos".

Sorri, no meio da longa fila de cadeiras vermelhas da última catedral do cinema de Lisboa. "Talvez seja essa a grande característica do século XX: capaz de criar do nada mas não acabar sem destruir o que criou".

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