"A curiosidade e os desejos das crianças são iguais em todo o lado"

Ana Maria Machado, vencedora do Prémio Hans Christian Andersen, explicou como a literatura para a infância se impôs no Brasil e no mundo.

Foto
dr

A escritora brasileira Ana Maria Machado quis resumir para o auditório os traços característicos da literatura infantil brasileira: “Temos muita liberdade. Temos também uma tradição preciosa. E temos a vantagem do que inventamos a partir das nossas desvantagens.”

Aquela que foi Prémio Hans Christian Andersen em 2000 falava no 1.º Encontro de Literatura Infantil da Lusofonia, que termina neste sábado, na fundação O Século (S. Pedro do Estoril). Numa comunicação a que deu o título “Pelas frestas e brechas”, recorreu ainda ao pensamento do académico e crítico literário brasileiro Alfredo Bosi: “A capacidade que a nossa cultura criadora tem para integrar amorosamente o popular e o erudito.”

Antes, em conversa com o PÚBLICO, tinha dito que “as crianças se parecem em todo mundo” e que foi muito bem acolhida nas escolas que visitou por estes dias em Lisboa: “Os meninos tinham lido o meu livro O Pavão do Abre e Fecha [edição Evereste, ilustração de Ivone Ralha], prepararam um vídeo e fizeram perguntas inteligentes, estavam mesmo interessados. O entusiasmo, a curiosidade, os desejos das crianças são iguais em todo o lado. Essa é uma das maravilhas da humanidade.” Só “os consumismos” variam.

Ana Maria Machado, 73 anos, foi a primeira autora de livros para crianças a integrar a Academia Brasileira de Letras (2003) e a segunda lusófona a receber o Prémio Hans Christian Andersen, considerado o “Nobel” da literatura infantil. Antes, foi Lygia Bojunga, também brasileira (1982). E esta atribuição faz parte das “frestas” por onde os autores de literatura infantil se foram “esgueirando desde então, aparecendo, sendo incluídos, considerados, respeitados” entre os escritores de outras geografias, descreve.

Mas houve “brechas” anteriores, como a reacção ao Acto Institucional n.º 5 (AI-5, 1968), expressão mais acabada da ditadura militar brasileira. Ana Maria Machado explica: “Como o AI-5 trouxe um fechamento político e uma repressão muito acentuados, alguns dos intelectuais que queriam dizer alguma coisa (…) saíram em busca de brechas por onde pudessem tentar passar.” Procuraram então géneros alternativos, considerados menores, que “não chamassem tanto a atenção das autoridades e que permitissem o uso de uma linguagem altamente simbólica, polissémica, multívoca”. E apostaram “num leitor inteligente que os decifrasse e embarcasse com naturalidade no seu universo metafórico”. Esses géneros viriam a constituir uma “marca de época”. Foram os casos “da poesia do mimeógrafo, das letras das canções e da literatura infantil”.

“Efervescência” criativa

A autora, a mais velha de 11 irmãos e bisneta de um português, lembra que é quase um lugar-comum afirmar que “uma literatura infantil de qualidade só se desenvolve quando a literatura dita de adultos já atingiu a maioridade e há condições socioeconómicas para a busca de um grande aumento do número de leitores ou da formação de um mercado de futuros leitores”. Resumindo: “Em uma palavra (bem antipática, aliás), massificação.” E não tem dúvidas de que a maturidade da literatura brasileira foi atingida na segunda metade do século XX, “depois de Machado de Assis e Euclides da Cunha, de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Meto, de Clarice Lispector e Guimarães Rosa”.

Já a possibilidade da tal “massificação” aconteceu no final dos anos 1960, início de 1970, com o lançamento de muitas revistas no mercado. Ana Maria Machado dá conta do caso da revista infantil Recreio, que, pouco depois do lançamento, vendia 250 mil exemplares por semana. A esta dinâmica vem juntar-se, em 1972, uma lei com directrizes para a educação. “Um artigo dessa lei recomendava às escolas que propiciassem a seus alunos oportunidades de leitura extracurricular. Num governo autoritário, qualquer recomendação era uma ordem.” Conclusão: “Outra brecha, mais uma desvantagem que virava vantagem.”

Como havia poucos livros interessantes, os professores apoiavam-se nas revistas. “Em poucos anos, os contos das revistas estavam sendo reunidos em volumes vendidos em bancas. As instituições oficiais e a iniciativa privada faziam concursos para descobrir originais inéditos, a FNLIJ multiplicava os seus prémios de qualidade para livros publicados, destacando a produção recente.”

Nos anos 1980, começaram as surgir livrarias especializadas em livros para crianças e jovens, estimuladas por esta “efervescência” criativa. A própria Ana Maria Machado foi uma das fundadoras da primeira livraria infantil no Brasil, a Malasartes (Rio de Janeiro, 1980). O contágio chegou às editoras, que também investiram neste segmento, “incentivando ilustradores nacionais, apostando na melhoria da qualidade gráfica e técnica”. Assim se chegou aos “excelentes e variados catálogos” do mercado de livros para a infância no Brasil de hoje.

Presente em todo o discurso e prática desta autora, que já publicou 95 títulos para crianças e 25 para os outros (num total conjunto de cerca de 22 milhões de livros vendidos), está esta ideia central: “O essencial da literatura infantil não deve ser o infantil, mero adjectivo. Deve ser a literatura, isso, sim, substantivo. E a coisa mais importante na literatura é que os livros falam entre si, como lembra Umberto Eco, evocando Borges.”

Um dos livros que escreveu para “não crianças” foi Palavra de Honra, inspirado na história do seu bisavô paterno, português e natural de Foz do Sousa (Gondomar): “Um homem com um grande sentido de ética, para quem a palavra de alguém (a palavra de honra) bastava para confiar. Acabou sendo enganado pela malandragem brasileira.” Não está editado em Portugal.

“Filhos de Lobato”

Há uma outra ideia recorrente na comunicação da escritora: a de que tudo começou com Monteiro Lobato, “um pioneiro fantástico”, que foi, além de escritor, “editor, distribuidor, tradutor, militante do livro”. Numa passagem por Portugal em 2004, o PÚBLICO perguntou-lhe: “Se fosse uma personagem, qual seria?” Escolheu Emília, precisamente de Monteiro Lobato (Sítio do Picapau Amarelo). “Pela irreverência, por ser autoritária, por fugir ao senso comum e por afirmar: ‘Independência ou morte.’ Eu sou a Emília.” Continua a sê-lo.

Ana Maria Machado fala mesmo de “herança lobatiana” e conclui que os “antigos leitores (a geração que José Roberto Whitaker Penteado chama de ‘filhos do Lobato’) é que incentivaram o desenvolvimento do mercado que possibilitou a eclosão da literatura infanto-juvenil em todo o seu esplendor”. Lembra que “o trajecto é longo e começou há muito tempo”. E pede: “É fundamental que não se interrompa justamente agora – quando sobem os índices de escolarização no país.”     

Sugerir correcção
Comentar