No palco de Vanda

Roman Polanski não inventa nada com esta variação sobre Sacher-Masoch. Nem precisa: basta-lhe mostrar o grande cineasta que ainda é.

Parece que Roman Polanski não terá reparado originalmente nos paralelismos entre a sua própria vida e a peça de David Ives que adapta ao cinema em Vénus de Vison. Pois, pois, e nós a acreditar que Polanski se está a fazer de sonso, ele que não fez outra coisa na vida que não fosse filmar-se por interposta pessoa, assumidamente ou à socapa, nas histórias que conta. E logo agora, que Mathieu Amalric faz literalmente de Polanski-demiurgo frente a Emmanuelle Seigner, Madame Polanski na vida real, é que ele se vem fazer de inocente - coisa que, como estamos todos fartinhos de saber, ele nunca foi (e nem estamos sequer a pensar no célebre caso judicial que ainda hoje o persegue). É, precisamente, esse jogo transgressor e provocador em que Polanski sempre foi perito, esse jogo de espelhos de feira popular entre palco e vida, que torna Vénus de Vison num grande, grandíssimo filme. Que pode não inventar nada nem trazer nada de novo à carreira do cineasta, mas que nem por isso deixa de gerir com uma maestria quase insultuosa as transições entre alusão e metáfora, realidade e ficção.

Tudo começa com uma audição para uma peça teatral, uma adaptação da Vénus das Peles de Leopold von Sacher-Masoch; o encenador está à beira de ir para casa num dia de tempestade, uma actriz chega tarde e lança-se num ensaio a contra-gosto do encenador, que, electrizado pela justeza da interpretação, deixa a coisa seguir. Eis os espelhos a entrarem em acção: primeiro entre peça e livro, actriz e encenador, porque a actriz se chama Vanda, como a personagem de Sacher-Masoch, e o encenador tem mais afinidades com o Severin do livro e da peça do que parece à primeira vista. Depois, os diálogos transformam-se em catalisadores, ora revelando ora escondendo significados, identidades, atitudes, numa guerra surda de sexos onde tudo se desmorona e reconstrói com cada gesto, cada olhar, cada frase. O jogo último, o que subjaz a tudo, é o jogo entre peça e filme, com um Polanski em absoluto domínio da forma, a manter sempre presente a dimensão teatral do dispositivo (apenas um cenário e dois actores) ao mesmo tempo que elimina qualquer suspeita de teatro filmado. Vénus de Vison é cinema extraordinariamente encenado, e a expressão francesa que designa simultaneamente “realizador” (de cinema) e “encenador” (de teatro) raras vezes terá feito tanto sentido: metteur en scène. Literalmente, Polanski “coloca em cena”, “coloca em palco” um jogo de poderes e paixões que tem algo dos seus filmes de juventude, quer na Polónia quer no exílio europeu (e a música de Alexandre Desplat não faz outra coisa que não seja sublinhar a dimensão grotesca, satírica desse seu passado), jogo esse a que um Amalric imperial e uma Seigner justíssima se entregam com a volúpia do abandono. É Polanski a provar porque é um enorme cineasta, a assinar um dos grandes filmes do ano. Onde nada se descobre mas tudo se reinventa.

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