No jogo da comparação

Novo Meeting Point da Gulbenkian junta o francês Fantin-Latour e o português Manuel Botelho. Um encontro inesperado ou nem por isso?

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Em Fantin-Latour tudo parece perfeito demais na sua artificialidade, como se não pudesse ser outra coisa que não irreal Cortesia: Fundação Calouste Gulbenkian

Pôr obras lado a lado para da relação entre elas tirar leituras várias, começando por entrar no jogo da comparação, é o princípio da curadoria. E é um bom princípio. Sobretudo quando os encontros que se promovem não são à partida evidentes e, depois de feito o trabalho de comissários e artistas, se tornam, de certa forma, naturais.

Manuel Botelho nunca antes se tinha imaginado na companhia de Henri Fantin-Latour, o pintor do romantismo francês com quem se cruza em Meeting Point, segundo episódio do programa da Gulbenkian que junta obras das colecções do museu e do Centro de Arte Moderna (CAM) da fundação. O artista português está longe de o ter entre as suas referências, mas o “realismo extremo” a que se dedica a sua pintura aparentemente inócua, com “uma nuvem que é preciso procurar”, interessa-lhe. Como lhe interessa a possibilidade que a fotografia lhe dá de compor como se pintasse.

“Não sei pintar com aquele rigor todo do Fantin-Latour, nem me interessa. Pensei, aliás, que tinham enlouquecido quando me falaram deste encontro, mas depois fui vendo as coisas de outra maneira. Aquela pintura aparentemente muito decorativa, bonita, esconde muita coisa. E usa uma série de dispositivos de composição que eu também uso, com objectivos completamente diferentes”, explica Botelho.

Foi em parte por causa dessa relação que os dois artistas mantêm com o realismo e a composição cuidada, ainda que com pontos de partida e de chegada bem diferentes, que Helena de Freitas, comissária de Meeting Point, resolveu pô-los à conversa. Para ela, as duas fotografias do artista português que podem ver-se junto à pintura de Fantin-Latour La Table Garnie (1866) – 101.rç-cmb (2007-2008), da série Confidencial/Desclassificado: Ração de Combate – são também naturezas-mortas

“O que quis, em primeiro lugar, foi relacionar as duas colecções e, ao fazê-lo, criar espaço de tensão, de paragem”, diz esta historiadora que vem da arte contemporânea e que para criar este programa que juntou na exposição inaugural Rembrandt e Paula Rego (Junho a Setembro de 2014) teve de mergulhar nas mais de seis mil peças que compõem a colecção de Calouste Gulbenkian e que vão da Antiguidade no Ocidente, no Médio-Oriente e na Ásia, até ao melhor do que a pintura europeia tinha para oferecer dos séculos XV ao XIX, passando pela tapeçaria, os livros e as artes decorativas. “É importante que os artistas contemporâneos olhem para a colecção deste museu e, para isso, é preciso chamá-los, trazê-los.”

Para isso Helena de Freitas dedicou-se ao estudo do acervo do museu e procurou não artistas, mas obras capazes de criar pontes com as da colecção que o CAM tem à sua guarda e que a comissária conhece bem.

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Cortesia: Fundação Calouste Gulbenkian

As obras de Fantin-Latour e de Manuel Botelho estão à entrada do Museu Gulbenkian, num corredor de ligação entre galerias e quem passa pára mesmo. Helena de Freitas gosta de as ver aí, num “espaço de grande mobilidade”, sempre sujeito a surpresas. Afinal, lembra, o encontro entre o pintor francês e o artista plástico português também começa por ser inesperado.

Contaminações
“Sempre vi o Fantin-Latour sem grande tensão emocional, como o pintor da casa imaculada. Agora que o pus ao lado do Manuel Botelho, tudo mudou. Olho para esta pintura e para todas estas frutas por comer e descubro-lhes leituras ocultas, acho-me no intervalo de uma casa, no momento antes: antes de tudo isto ser consumido, antes de tudo isto desaparecer.” É curioso pensarmos, lembra a conservadora, que os ingleses chamam à natureza-morta sitll life, que numa tradução directa será qualquer coisa como “ainda vivo”. “Na fotografia do Manuel Botelho acho-me no intervalo de uma guerra. Nos dois artistas – e nestas obras em particular – a morte está presente de maneiras muito diferentes, mas está lá.”

A morte não é, no entanto, o único ingrediente partilhado. Ambos partem de uma encenação cuidada, embora o resultado da composição aponte para ambientes distintos. Em Fantin-Latour tudo parece perfeito demais na sua artificialidade, como se não pudesse ser outra coisa que não irreal. Em Manuel Botelho o que vemos está sujo, usado, gasto (tabaco, notas, moedas, um baralho) – parece não haver nas suas obras qualquer possibilidade de fuga. É claro que, comparadas, há nelas muitas coincidências formais, diz Helena de Freitas: os fundos escuros, os objectos dispostos sobre uma mesa, a faca, que na pintura está num equilíbrio instável e na fotografia se multiplica em número e tipologias, um centro de atracção imediato (numa um bouquet de hortências, nas outras a garrafa ou o dinheiro iluminados)…

“Não é só o Fantin-Latour que traz uma certa irrealidade, o Manuel Botelho também. As naturezas-mortas que constrói, com objectos que encontra na Feira da Ladra, servem para recriar momento da Guerra Colonial, que ele não viveu. Nele as memórias dessa guerra são produto de uma fantasia, são uma construção.”

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Em Manuel Botelho o que vemos está sujo, usado, gasto Cortesia: Fundação Calouste Gulbenkian

A “contaminação” das obras dos dois artistas também não está só na leitura que delas se pode fazer quando está lado a lado – está lá desde sempre porque, explica a comissária deste Meeting Point, Manuel Botelho fotografa como se estivesse a pintar e Fantin-Latour pintava como se fotografasse.

Botelho aceita que hoje se olhe para 101.rç-cmb como naturezas-mortas, mas garante que não houve qualquer intenção formal nesse sentido no acto de fotografar. “É claro que esse conceito está na minha cabeça, faz parte do meu percurso porque dele fazem parte as naturezas-mortas do Chardin e do Cézanne, mas não fiz estas fotografias com o objectivo de chamar esses formalismos.” A presente convivência com Fantin-Latour, garante, também não altera a forma como olha para as suas fotografias – além de 101.rç-cmb, Botelho expõe ainda e pela primeira vez 211.parad (2014-2015), obra em que mostra um guião (insígnia militar) com grande valor decorativo e simbólico -, “muito pelo contrário”. São elas que o fazem ver La Table Garnie de outra maneira: “Estes trabalhos são diametralmente opostos em termos de linguagem, mas os dois têm muitas camadas. A natureza-morta do Fantin-Latour não é apenas bonita, esconde muita coisa.”

No ensaio que publica no pequeno catálogo, Raquel Henriques da Silva, historiadora de arte e co-comissária de Meeting Point, alerta precisamente para as múltiplas leituras da obra de Manuel Botelho, que convoca memórias e emoções, quando a de Fantin-Latour parece guardar sobretudo espaço à fruição estética, ao prazer que se pode tirar da beleza. É a faca – ou as facas no caso de Botelho – que simbolizam a distância entre as duas.

Na pintura deste francês discreto, pouco dado a rupturas ou vanguardas, adivinha-se o perfume das flores e dos frutos, e presta-se atenção a uma faca “morna”, sem ponta de ameaça, escreve. Nas fotografias do artista português, ancoradas na guerra colonial, as facas ajudam a falar da violência bélica em geral, a de todo e qualquer conflito armado. “Podem ter sido usadas para descascar batatas e para degolar. Estão sujas porque a guerra é suja”, complementa Manuel Botelho. “Fazem parte das ficções que vou construindo a partir de testemunhos directos de quem viveu essa guerra, de quem a experimentou.” A exposição termina a 26 de Outubro.

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