Neste Romeu e Julieta só há mulheres, e há mais família do que amantes

Joana Linda dirige um elenco totalmente feminino numa adaptação do clássico de William Shakespeare que esta quinta-feira se estreia no Clube Estefânia, em Lisboa. No palco acontecerá também o arranque da programação dos espectáculos do festival Temps d’Images.

Foto

Em Junho de 2009, a companhia norte-americana Nature Theater of Oklahoma apresentou no Teatro Maria Matos uma versão peculiar de Romeu e Julieta. Usando o mote do clássico de William Shakespeare, aquilo que se seguia era um desfiar de monólogos que reproduziam resumos da peça recolhidos telefonicamente junto de dezenas de pessoas. O resultado, pouco rigoroso, era de uma imprevisível e fantasiosa reinvenção do texto.

Claramente, não ligaram a Joana Linda. Nos seus tempos de adolescente, quando sonhava em ser actriz, leu a peça vezes suficientes para praticamente a saber de cor. Mas depois de, nessa fase, subir ao palco e odiar a experiência, dedicou-se antes à imagem – fotografia, vídeo, cinema. Só recentemente começou a sentir de novo vontade de se testar numa situação de palco. “Ainda não sabia bem se era performance ou teatro que queria fazer”, relata ao PÚBLICO. “E então fui ver alguns espectáculos, de que não gostei, e no fim perguntei-me porque haviam as pessoas de se pôr a inventar quando há tanta coisa boa escrita.” E, para o ar, atirou, por exemplo, porque não se fazia um Romeu e Julieta só com mulheres? Como não estava sozinha, a amiga que a acompanhava não deixou que aquela ideia se esfumasse.

É essa mesma proposta de um Romeu e Julieta feminino e feminista que hoje se estreia no Clube Estefânia, em Lisboa, e por lá fica até sábado no primeiro grande momento da programação do festival Temps d’Images – que, em diversos espaços e diferentes disciplinas, se estende em Lisboa até Janeiro de 2015. Num certo sentido, essa opção de apenas convocar mulheres para o palco estabelece uma ponte para com o percurso artístico de Joana Linda na imagem. “O trabalho que desenvolvi durante estes anos esteve muito ligado às mulheres, ao corpo das mulheres, com um lado muito autobiográfico e de auto-retrato”, diz. “Depois, como o Shakespeare era feito só com homens no seu tempo, este é também um exercício de perceber como poderia funcionar hoje, só com mulheres. Mas sendo feminista, não tenho grandes pretensões nem nenhum objectivo de provar seja o que for.”

Carne e osso ou projectadas
Dispensando o papel de musas, são as mulheres – de carne e osso ou projectadas num tríptico com a imagem de actrizes pré-gravadas, representando as figuras de autoridade – que enchem o palco, e a encenadora quer também averiguar se será possível que o público se consiga abstrair desse facto, como que esvaziando a peça de qualquer leitura de género. A par disso, Joana Linda pretende deslocar o habitual foco da história de amor para as relações familiares, para a ideia de predestinação e para a recusa das normas que pretendem impor aos protagonistas. “Ainda hoje há esta pressão de seguir os valores da família, quer sejam religiosos, morais ou profissionais”, compara. “Todos nós sentimos como é romper com aquilo que os nossos pais esperam de nós e seguirmos os nossos sonhos, coisas tão simples como assumir a sexualidade ou enveredar pela carreira artística.”

Fundamental foi então o olhar colocado sobre um Romeu que toma “todas as decisões certas mas que levam à pior resolução possível”. “Claro que em análise da vida moderna”, ressalva Joana, “toda a gente diz que se mata porque não tem alternativa. E ele tem alternativa. Já perdeu tudo, não pode entrar em Verona, mas tem o mundo inteiro. E abdica do mundo inteiro por ela.” A intenção da encenação não é, ainda assim, retirar a importância ao amor. Mas antes vincar que “tudo acontece para que acabe o ódio entre as famílias”.

O elenco feminino presta-se ainda a outra sugestão, ajudada por um guarda-roupa quase igual. Em palco estão duas famílias rivais que já nem sabem de onde vem tanto ódio e que são discerníveis por um básico jogo de preto e branco. Joana Linda quer, no fundo, que as famílias sejam olhadas como iguais e não como diferentes. “Um ódio assim tão grande só pode nascer onde antes houve um amor muito grande”, argumenta, e “se um dia as famílias eram próximas e algo aconteceu que as desuniu, isso faz com que sejam mais próximas do que aquilo que pensam que são.”

Embora todos pareçam conhecer o enredo da peça de Shakespeare, não só o Nature Theatre of Oklahoma parece ter provado o contrário como é a ideia redutora da história de amor que vinga no imaginário popular, sem espaço para muito mais. Essa sensação, diz Joana Linda, foi-se amplificando em si à medida que começou a aperceber-se, ao volante do carro, da quantidade de canções que nomeiam a dupla em nome do amor eterno. Este Romeu e Julieta foi feito para desligarmos o rádio. Para que essas verdades se calem por um bocadinho e deixem ouvir novamente o que está Shakespeare a dizer.

Mais Temps d’Images
Após a estreia de Romeu e Julieta, no Clube Estefânia, o festival multidisciplinar Temps d’Images apresenta espectáculos de palco de Forced Entertainment (dia 12, Teatro-Estúdio Mário Viegas), Sónia Baptista (13 a 20, Cão Solteiro), Plataforma 285 (13 a 30, LX Factory), Ainhoa Vidal (22 e 23, Teatro-Estúdio Mário Viegas), John Romão (27 e 28, São Luiz), Sofia Dinger (27 a 29, Alkantara), entre outros. Desses outros, farão parte a nova peça de Tiago Rodrigues, António e Cleópatra, que estará em cena no Centro Cultural de Belém, de 4 a 8 Dezembro, ou o espectáculo Karaoke concebido por Davis Freeman com a participação de vários artistas internacionais, tendo o lugar português sido ocupado pelo realizador João Salaviza, no Maria Matos, a 6 de Dezembro. Há ainda lugar para performances-palestras de Ana Pais e de Rui Catalão (30 de Novembro, Horta Seca; 11 a 18 de Dezembro; Carpe Diem, assim como instalações de gente como Boris Charmatz e Mathilde Monnier na Galeria Boavista, entre 20 e 30 de Dezembro.

Sugerir correcção
Comentar