Nestas ervas gostaria de deixar cair os punhos

Segunda vida de um dos maiores livros da poesia portuguesa contemporânea, entendida também como forma de agir

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A poesia de José Miguel Silva é rudemente concreta e franca, sem deixar de constituir uma manifestação de inteligência e de cultura NELSON GARRIDO

A reedição de Ulisses Já Não Mora Aqui significa que agora revive, passados mais de dez anos, um dos livros de poesia portuguesa mais importantes das últimas décadas. Um facto que, por si só, já deve ser motivo de atenção.

Este livro de José Miguel Silva não é uma sentida homenagem ao património clássico, mas a demonstração de quanto uma poesia pode ser rudemente concreta e franca, nos seus procedimentos e nas suas preocupações, sem deixar de ser uma subida manifestação de inteligência e de cultura. Basta pensar que um livro como Movimentos no Escuro (Relógio D’Água, 2005) se construía tomando por base um conjunto de filmes, mas que o autor se recusava a submeter à ecfrase da praxe, e que, pelo contrário, utilizava para criar um conjunto notável de poemas que desfibravam os arriscados filamentos da biografia e apelavam a uma dimensão política de que a sua poesia nunca se ausentou. Num momento não propriamente habitual de auto-análise, José Miguel Silva afirmou: “Mais pertinente do que o carácter realista da minha poesia talvez seja a sua vocação política, a sua propensão para interpelar não apenas o íntimo e pessoal, mas também o social.”

Não muito diferentemente, a inclusão de Ulisses neste novo livro (trata-se, realmente, de uma “edição revista”) não é um gesto votivo, nem um dos passos de uma romagem pia. Ele é uma estaca em terra dura, uma forma de dizer o que nos vem acontecendo desde os tempos em que o mito e a História se amalgamavam de forma difusa. Mas como este poeta conhece bem, demasiado bem, este seu (nosso) tempo, não se deixa encantar por sereias, tenham elas a forma que tiverem. José Miguel Silva deixa de parte o mito, enquanto simples explicação simbólica do desconhecido, para usar dele apenas a medula. Não vamos nós pensar que o mundo começou esta manhã, e que todos os nossos dias inventam algo de novo. Como em Ricardo Reis: “Antes de nós nos mesmos arvoredos/ Passou o vento, quando havia vento,/ E as folhas não falavam/ De outro modo do que hoje.” Apesar de o livro de José Miguel Silva seguir o trilho do Ulisses homérico, pelo menos em esqueleto — as partes de Ulisses Já Não Mora Aqui chamam-se Cíclopes, Entre Cila e Caríbdis, Da Pátria dos Lotófagos à Ilha de Circe, Hades, Ítaca e o Resto —, essa circunstância é menos um roteiro do que uma forma lúcida de ser actual. Isto é, sem ignorar que ninguém começa do nada. As partes de Ulisses Já Não Mora Aqui (o título é significativo, pois nega o mito acrescentando-lhe um elemento temporal, e temporário: “mora”) funcionam como placas tectónicas para uma travessia cultural, projectando-se como ponto de fuga deste livro de poemas; mas, são, sobretudo, um eixo organizador. Mas a épica é, como já sucedera à lírica, “ultrapassada, uma vez mais,/ pelas ardentes circunstâncias/ da realidade” (Serém, 24 de Março, Averno, 2011).

Importa verificar que, na passagem da primeira para a segunda edição de Ulisses Já Não Mora Aqui, muitas alterações — além da eliminação de um número considerável de poemas, que terão, agora, de ser procurados apenas na edição príncipe — consistem na deslocação de palavras de um verso para outro, na alteração do contínuo da frase no contexto do verso e da estrofe. Eis um sinal apenas de que a poesia de José Miguel Silva é uma das mais atentas à questão formal da sua poética. O mesmo sucede, independentemente do caso da reedição, com as escolhas vocabulares, sintácticas, sonoras. Num poema como Trevas isso é particularmente notório: “E o pior é que chamamos liberdade/ a um tapete que, rolante, já não ouve/ a opinião dos nossos pés, que nos leva/ para onde e anuímos, alheados,/ aos mecânicos desígnios do poder.// Respiramos cadeados, consumimos/ injustiça, damos duas várias voltas/ ao risonho torniquete que nos serve/ de chapéu e permutamos a cabeça/ por um prato de aspirinas.» (p. 18) Sirva a extensa citação para justificar que se atenda a uma poesia em que os efeitos do inesperável não se manifestam numa explosão álacre, mas se decidem numa enunciação de uma sobriedade escultórica. O “tapete rolante”, que seria a dicção vulgar, passa a outra coisa, que não tem em conta o sujeito perante este objecto esmagador bem identificado, que é a actualidade que nos coube suportar, e os regimes políticos e económicos com que nos trituramos. Os “desígnios” são “mecânicos”, e não “mecanizados”. Etc.

Esta poesia activa inúmeros recursos para que as frases de que se compõem os seus versos nunca caiam naquele ramerrame que confunde acessibilidade com prosaísmo, e franqueza com boçalidade. Atente-se, no entanto, ainda no facto de a palavra “cadeados” passar da sua habitual função de nome à de adjectivo, sem se submeter a um exibicionismo de inventividade. Porque o seu intuito é demasiado sério (“no bom sentido”, como diria o poeta Antonio Machado). Tanto mais que o “prato de aspirinas” — em si mesmo, uma noção avessa à norma — se articula com a “cabeça”, o “chapéu” e o “torniquete”, mas, também, com o prato de lentilhas que lá não está, se não a sobrevoar, como horizonte de possibilidade e fantasma interpretativo destes versos com a dureza certa de um tiro. Isto é: a versão laica de Esaú, que abdicou dos seus direitos enquanto primogénito pela dita ementa. Também nós abdicamos da liberdade pelos vários fármacos que interpomos entre nós e o que não alcançamos. Daí que o poema conclua, ecoando Primo Levi: “Se isto que nós vemos é um homem” (p. 19). Em poesia, muitas vezes nos habituamos a ter de escolher: ou um afeiçoado desvelo na motivação formal do poema, ou um denodado esforço para transmitir conteúdos reconhecivelmente concretos, quando não políticos. Mas aqui o leitor não tem de, porque não pode, escolher. Tudo se interliga: expressão e substância fundidos numa síntese muito rara de alcançar.

Não admira, pois, que a ética deste poeta esteja mais próxima de Zbigniew Herbert, citado em epígrafe e traduzido — “O lamento de um poeta caído assemelha-se agora a uma salamandra devorada por formigas” (p. 26) —, ou de Czeslaw Milosz — cuja poesia “Vi a queda dos Estados e a perdição das tribos,/ o bando de reis e imperadores, o poder dos tiranos” nos lembra algum JMS —, do que, por hipótese, de um Mandelstam, que considera, algures, não ser contemporâneo de ninguém. Pelo contrário, José Miguel Silva é marcadamente contemporâneo. Não só o uso do plural (signo de comprometimento e participação, não de demagogia) o indicia — “Tal como vós,/ escolho o caminho da loja seguinte” (p. 10) —, deslocando o poeta do púlpito, onde, por vezes, alguns ainda se posicionam, para o alvo das rajadas; mas também a sua ancoragem na realidade histórica e social do seu contexto. Este poeta, então, não faz prédicas, nem advoga: age, com os seus poemas. 

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