Nelson Freire vezes dois

Um Beethoven soberano, um Chopin nem tanto.

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Notável no piano romântico em geral e em Chopin em particular, Nelson Freire mostra-se desta vez mais luminoso em Beethoven

Nelson Freire é presença assídua em Portugal — ainda há três semanas deu o recital inaugural da 50.ª edição do Festival de Sintra. Aliás, foi vencedor do Concurso Vianna da Motta (ex-aequo com Vladimir Kraenev) em 1964, ano em que iniciou também uma intensa carreira discográfica. Schumann, Liszt, Tchaikovski ou Rachmaninov, mas sobretudo Chopin, isto é, o piano romântico, são as recorrências maiores de uma discografia vasta. Apesar de já ter um registo de Sonatas, Beethoven tem muito menor incidência nos seus discos. Mais surge então como ousado o gesto de se abalançar a uma integral dos concertos do compositor, começando logo com o derradeiro Concerto nº 5 Imperador, para mais acrescentando a derradeira Sonata op. 111.

Compreende-se, e até pode ser mesmo preferível, que em casos de integrais de concertos como os de Beethoven os pianistas, em vez de optarem logo pelo lançamento do conjunto, preferiram ir publicando registos obra a obra (o “pequeno” mas com frequência irritante “truque” editorial da etiqueta é que depois, no fim, lá surge quase inevitavelmente a caixa, muitas vezes sem os complementos de programa). Mas essa opção também justifica alguma prudência na audição e na apreciação, pois só final teremos a indispensável percepção de conjunto. Ainda assim, que fazer diante deste registo de Beethoven se não rendermo-nos ao prazer e à evidência de que é soberano?!

Em 2006, Freire, a Gewandhausorchester e Riccardo Chailly publicaram uma fabulosa gravação dos dois concertos de Brahms, aqui aliás considerado “o melhor disco do ano”. A alquimia repete-se agora num Imperador de um portentoso fulgor épico, com um segundo andamento verdadeiramente sublime, na respiração larga e na infinita delicadeza do piano. Mas, se o entendimento Freire/Chailly já tem antecedentes, então a surpresa é ainda maior na assombrosa interpretação da Sonata op. 111. A tensão no Allegro inicial não tem a menor “quebra”, qualquer momento de apaziguamento; depois, a Arietta tem o sopro esplendoroso de um percurso para o apaziguamento luminoso. Extraordinário disco!

Onde menos se esperaria, isto é, em Chopin, é onde Freire nos deixa perplexo. Para quem tem tão notáveis registos dos Estudos, dos Nocturnos, das Sonatas, ou, em princípio de carreira, das Mazurkas, como explicar este pot-pourri tão desigual?

No Improptu inicial, e ainda que na interpretação pouco transpareça o caracter justamente de sugestão de improviso, não se fica indiferente à diversidade do colorido, tal como na Balada transparece o sentido narrativo e o Berceuse é mesmo um puro encantamento. Mas como explicar estas Mazurkas sem caracter, a precipitação e mesmo a mecanicidade confusa da Polonaise? Quanto ao Concerto nº 2, não há remissão, com pianista para um lado e a direcção e a orquestra para outro; quando finalmente se encontram, no terceiro andamento, a causa já está perdida.

Apesar das episódicas qualidades e sobretudo de uma admirável Berceuse, este desequilibradíssimo programa, para mais vindo de um intérprete de Chopin tão eminente como Freire, é uma notória decepção.

Mas há Beethoven, e de que modo!?

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