Naturalmente pródiga

O círculo de matérias e imagens construídas de Alberto Carneiro sob uma declarada filosofia de vida transparece na tranquilidade apaziguadora e sensível que caracteriza Território.

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Em Território, Joana Providência homenageia a obra de Alberto Carneiro DR

Adoptar a obra de um aclamado artista plástico como linha de referência que atravessa um trabalho de palco é um gesto de coragem, pela responsabilidade e pelas expectativas, que Joana Providência tem feito na sua carreira. A fonte inspiradora foi agora o círculo de matérias e imagens construídas de Alberto Carneiro; a sua declarada filosofia de vida transparece na tranquilidade apaziguadora e sensível que caracteriza Território – a nova peça da coreógrafa.

Em inglês, a expressão coloquial para os ambientalistas missionários é "tree huggers": abraçadores de árvores. Em Território, o abraço à árvore concretiza-se na forma subtil e atenciosa como o espectáculo dá corpo ao desafio de assumir uma relação com a obra de Carneiro colocando, como ele diz, a natureza prodigiosa “no lugar da arte”.

A coreografia de Joana Providência equilibra bem a utilidade e a estética das acções,  harmonizando o diálogo dos humanos com os elementos naturais - fogo, ar, terra, água – e várias formas da madeira: ramo, tronco, graveto... O abraço terno à árvore aparece literalmente, transposto para a dança, quando vemos uma bailarina sustentada por um bailarino, ambos hirtos na vertical: ela segura na horizontal um majestoso ramo de bambu, de braços envoltos nele, que roda sobre si próprio e faz esta construção orgânica girar em beleza.

Outros desenhos parecidos aparecem: a árvore é sombra e é abrigo; o tronco faz pontes, logo une; o contacto físico com a água e a terra dá prazer. Esta última verdade afirma-se com uma solução astuta; vemos os bailarinos sentados mexendo a terra com gestos de apanhar, esfregar, alisar, desenhar e espalhar; e, exactamente sincronizados, ouvimos sons de mexer na água.

Repetição do movimento, uníssono e interdependência são técnicas base de vários jogos coreográficos que organizam a relação dos bailarinos, entre si e com os materiais naturais. As acções exploram o potencial formal – quando os corpos juntos constroem esculturas efémeras; o poder evocativo – quando há corridas agitadas que incorporam as florestas varridas pelo vento; e beneficiam das possibilidades lúdicas – umas bolas de terra compacta, carregadas à frente da cabeça, criam seres intrigantes; e apoiando os grossos troncos de bambu como fulcro, os corpos elevam-se como gafanhotos divertidos.

Território tem um grupo de intérpretes serenos e cúmplices; mas a sua precisão não é constante e o mote que os mobiliza aproxima-se por vezes de exercícios óbvios de improvisação de grupo. O final que enfatiza a envolvência do ar, pela suspensão dos corpos seminus, retira-nos do calor do canavial e lança-nos para o frio e aridez da neve; é como um episódio adicional e contrastante, que pertence a outra história. Desalinha assim com o bom ritmo que identifica o espectáculo cuja duração, dinâmica e ligação de momentos está na pulsação certa.

São raros os trabalhos que se entregam à relação com o natural e assumem um papel ecologista, como aparece há muito na obra de Madalena Victorino. Talvez porque os agentes dedicados à dança contemporânea querem afastar-se dos rótulos de primitivo, irracional e ininteligível que se imprimem historicamente, com efeito negativo, por esta prática ser indissociável do corpo humano, exprimível sem a palavra e ligada a rituais populares e ancestrais. Território, contudo, é mais um bom exemplo que contraria essa percepção.

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