Nas entranhas do papel há fibra, músculo, suor e dança

Expande é uma coreografia de Madalena Victorino que conta a história da indústria do papel. Um espectáculo comunitário de dança, música e movimento que se estreia esta sexta-feira num museu em Santa Maria da Feira.

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Nas entranhas do papel há fibra, suor e dança Ana Almeida (montagem), Sara Dias Oliveira, Nelson Garrido

A coreógrafa Madalena Victorino está no espande do Museu do Papel, em Paços de Brandão, Santa Maria da Feira, para mais um ensaio da sua mais recente criação. Primeiro é preciso perceber o que é o espande. “Espande é o lugar onde o papel secava. As postas molhadas do papel eram carregadas à cabeça pelas mulheres e eram estendidas nas tesas para secar”, explica.

 Espande deu lugar a Expande, nome do espectáculo. Espande e expande têm a mesma sonoridade. Expande é também um verbo que se adequa aos 300 anos de história da indústria do papel na região e que se querem contar num museu que é também uma fábrica em laboração, um livro aberto sobre um modo de produção. Expande é expandir. Expandir o papel, expandir o passado, expandir o futuro, expandir o corpo, expandir os músculos. “Este museu transforma-se num teatro de vida. Expande é uma viagem, um caminho, pelas entranhas, pelas veias deste lugar”, conta a coreógrafa.

Expande percorre o museu e fala de fibras sem usar palavras. “A fibra muscular, a fibra dos tecidos, dos trapos que eram rasgados para fazer papel, a fibra humana, a fibra das mulheres que nos contam histórias de uma forma de trabalho.” Expande é uma celebração de uma indústria caseira e dura. “É também uma metáfora das dificuldades, da luta, do combate de todos os dias”, acrescenta.

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“Este espectáculo é lindo, não podia ser melhor, é uma terapia saudável”

Há dois meses que Madalena Victorino está no Museu do Papel para coordenar um processo criativo com gente da comunidade. Expande nasce com um grupo de 42 pessoas não profissionais na arte da dança. É gente comum, alunos da Academia de Música de Paços de Brandão, gente ligada ao CiRAC – Círculo de Recreio, Arte e Cultura de Paços de Brandão e da DAO – Associação Cultural e Desportiva. Todos dão o corpo ao manifesto para mostrar a fibra que se esconde nos músculos do corpo. Madalena Victorino não abafou o som da água que corre na ribeira, nem disfarçou a humidade do espaço. Estes elementos também fazem parte desta história.

É domingo de manhã, o último domingo antes da estreia. Madalena Victorino dá indicações para um ensaio sem paragens. À porta estão sábios que sabem de cor a história com chapéus de papel que parecem nuvens. Dão as boas-vindas. No chão está um portão humano, cabeça com cabeça, braços que dançam, corpos que bailam para abrir caminho. Sobem-se escadas, os corpos moldam-se às postas de papel, as bocas sussurram uma breve história, os mesmos corpos unem-se para a dança da água. “Vamos tentar ser água”, diz a coreográfa. Corpos de homens e mulheres, de miúdos e graúdos, ganham presença, intensidade. São água por instantes, absorvem-na na pele, abrem-se persianas para que o som da ribeira fique mais forte. Descem-se escadas e a pedreira que mora no chão do museu é o abrigo de raposas homens-mulheres que fazem música com pedras. Ali perto, há homens que mostram como o papel era feito no Egipto. Entra-se noutra fábrica onde estão as máquinas. O trabalho é duro, mecânico, não há tempo para olhar para o lado e as patroas de casacos de pele vigiam as operárias. Sobe-se para o espande que recua ao passado como se de um filme se tratasse. “Este espande tem vida, tem raparigas que sonham, raparigas que namoram, pessoas que trabalham, meninas que contam e adormecem”, diz Madalena Victorino. A sirene toca e é tempo de repetir os gestos mecânicos que dão vida ao papel.

Cheiro do papel, corpos que bailam 

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Expande nasce com um grupo de 42 pessoas não profissionais na arte da dança Nelson Garrido

Maria Armanda emocionou-se muitas vezes durante os ensaios. “Tudo isto é-me muito familiar, estas máquinas ritmadas e rotineiras, o cheiro do papel, os barulhos, os corpos que bailam a fazer sacos de papel.” Maria Armanda, que trabalha num hospital, revive a infância, o cheiro daquela matéria-prima. Os avós tinham uma indústria de papel, uma sacaria. “Cresci debaixo das mesas da fábrica, a brincar com as filhas das operárias.” Os telhados das casinhas das brincadeiras eram feitos de papel. E escrevia aerogramas com palavras ditadas pelas mulheres que queriam matar saudades dos maridos e namorados que estavam no Ultramar, enquanto faziam sacos de papel em gestos que pareciam danças. Em Expande, Maria Armanda transporta uma posta de papel à cabeça, entra na dança da água, é patroa de casaco de papel, trabalha no espande. “Este espectáculo é uma homenagem a todas as mulheres que trabalharam nesta indústria.”

Catarina Santos tem 17 anos, estuda no Balleteatro do Porto, faz parte de um grupo de saltimbancos. Em Expande, dança como se não houvesse amanhã. Não há cansaço que a vergue. Sai da sua zona de conforto e sente-se bem. Perdeu medos, vergonhas, e, quando se deita na cama, não poderia estar mais feliz. “Todo o cansaço é recompensado com a realização pessoal e profissional.” Aprendeu imenso nos últimos dois meses e Expande deu-lhe uma grande lição. “O importante não é sermos grandes, mas sim tornarmo-nos grandes para ultrapassarmos os nossos limites, quebrarmos o preconceito, a vergonha, o medo de errar.”

Inês Pinho tem 14 anos, canta no coro infantil do CiRAC e adora inventar danças. Expande permite-lhe essa liberdade. “Ficamos mais tranquilos, estou a gostar imenso, a história do papel faz parte do nosso dia-a-dia e tem a ver com este museu”, comenta. Celeste Silva é mais velha, tem 66 anos, trabalhou na indústria da cortiça, foi auxiliar de acção educativa, está reformada. Dança sozinha como um passarinho cansado que não consegue tirar os pés do chão. No espande, veste a pele de operária. “Este espectáculo é lindo, não podia ser melhor, é uma terapia saudável”, refere. Miguel Ângelo tem 12 anos. Termina a dança da água com uma guitarra deitada no palco. “É uma criança que está a pensar, que se ilude e que começa a lutar com o seu pensamento”, descreve. Não dança no dia-a-dia, mas não se nota. Miguel também toca guitarra na peça. “É um espectáculo diferente, não daqueles que temos de pôr o pé ali e o outro acolá. Nada disso.”

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Expande é também um verbo que se adequa aos 300 anos de história da indústria do papel na região Nelson Garrido

A música de Expande nasce de ideias partilhadas com alunos da academia de Paços de Brandão. Pedro Salvador, músico e compositor, não impôs limites, não estabeleceu regras. A banda sonora tem cordas, sopros, guitarras, pedras e máquinas de fabrico do papel. “Os alunos da academia viram as suas ideias crescer, a passarem para outra dimensão. Quisemos oferecer-lhes algo diferente do ensino clássico, que perdessem o medo de improvisar, mostrar-lhes que podem criar.” Pedro Salvador ouviu tudo e seleccionou o que fazia sentido. “Para cada cena, escolhemos a música que melhor se enquadra e que crie uma atmosfera para que o movimento coreográfico aconteça”, refere.

Expande também é essa liberdade de criar numa história que tem três séculos de vida. Estreia-se esta sexta-feira no Museu do Papel de Paços de Brandão, Feira, às 21h30, integrado na costela comunitária do Imaginarius – Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira. O músico e compositor Pedro Salvador criou a banda sonora. Marta Coutinho, Ruca Rebordão e Céline Tschachti são co-criadores da peça que se repete sábado às 21h30 e domingo às 19h00. A entrada é livre, a reserva obrigatória para o email pelouroctbm@cm-feira.pt. No sábado, o elenco está disponível para uma conversa com o público no museu às 17h00.

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