Narrativa de uma colecção e a sua relação com o Museu do Chiado

Entre o absurdo da decisão e o ridículo do seu argumento, apenas nos resta denunciar e lamentar uma realidade aparentemente insuperável

Em 1976, dois anos após a revolução de 25 de Abril de 1974, é criada em Portugal a Secretaria de Estado da Cultura (SEC), e no seu âmbito a Direção Geral de Ação Cultural (DGAC), que integrava a Divisão de Artes Plásticas, fundamental no processo de constituição da futura Coleção SEC.

Entre outras tarefas, à Divisão de Artes Plásticas cabia a missão de apoiar a criação e a difusão da cultura artística contemporânea. Para a concretização desse ambicioso objetivo, o Estado português definiu um critério simples, distante da definição de tipologias estruturantes de uma ideia precisa de coleção, mas ainda assim pragmático e consequente, passando então a adquirir uma ou duas peças de cada exposição individual realizada na Galeria Nacional de Arte Moderna (Belém) ou na Sociedade Nacional de Belas Artes, com objetivo concreto, desenhado pelo então Secretário de Estado da Cultura, David Mourão-Ferreira, de incentivar a criação e o apoio à divulgação dos artistas que expunham naquele contexto. Foram essas primeiras aquisições realizadas por Fernando Calhau que determinaram afinal a aposta no desenvolvimento da coleção de arte da DGAC/SEC. Ao sabor do tempo e das suas oportunidades, fora esse frágil mas ativo modelo a presidir à constituição da coleção de arte contemporânea do Estado democrático. Isto é, a coleção não se definia tanto pelo valor artístico das obras ou pela relevância dos seus autores, mas no essencial pelo valor simbólico adquirido pelos dois espaços institucionais escolhidos para neles recrutar as obras. 

Em parecer de 2008, Pedro Lapa, então diretor MNAC, ligava esse tempo de ação rudimentar à realidade deficitária do único museu tutelado pelo Estado em meados dos anos 1970 e orientado para a inventariação e conservação da arte contemporânea nacional. Sobre a constituição e dispersão das coleções então instituídas, afirmava: “A primeira destas coleções foi constituída a partir de 1976, através da DGAC, num período em que o único museu nacional de arte contemporânea, o MNAC, também tutelado pela Secretaria de Estado da Cultura, estava encerrado ao público por manifesta falta de condições de apresentação das coleções, dado o avançado estado de degradação das suas instalações. Também as direções de Eduardo Malta, desde 1960, e posteriormente de Maria de Lourdes Bártolo, de 1971 a 1988, não dotaram a coleção com a representatividade e qualificação adequadas das diversas manifestações artísticas nacionais, tal como previra o decreto-lei nº1, de 26 de Maio de 1911, fundador do MNAC, como um dos primeiros museus de arte contemporânea do mundo. Este vazio, sentido e clamado pela comunidade artística portuguesa durante anos, encontrou uma primeira tentativa de solução na proposta da SEC de se dar início a um conjunto de aquisições para que se apoiasse o trabalho desenvolvido pelos artistas, na ausência de meios e possibilidades da instituição estatal [MNAC] com a respetiva missão” [1]. Mas, é bom sublinhar, o ímpeto e a determinação oficial de dar início à Coleção SEC significou, apesar de tudo, um gesto decisivo perante a apatia da realidade museológica do nosso país nessa época. Aliás, a consequência maior desse gesto foi ter dado corpo a uma coleção hoje com mais de mil e cem obras, das quais algumas centenas assumem uma relevância incontornável, constituindo-se como exemplos seguros de muitos períodos essenciais da arte portuguesa, para lá dos acervos dedicados à arte e à fotografia internacionais.

Esta coleção sofreu demasiado de dispersão de tutelas e localização, perdendo-se inclusive o rasto a algumas obras que haviam estado durante anos espalhadas por representações oficiais do Estado. Isso aconteceu sobretudo pelas dificuldades de concentrar a afetação da coleção a uma só instituição. Recordemos que em 1992 dá-se a extinção da DGAC, e as competências da Divisão de Artes Plásticas são transferidas para DGEA. A extinção da DGAC conduziu à transferência da Coleção para a nova tutela do IPM, sendo realizada, porém, “sem que tivesse sido ainda efetuada a transferência para a Fundação de Serralves ou criada uma estrutura específica para a gestão das coleções” [2]. Tratava-se apenas de uma passagem de tutela administrativa e não de uma transferência ou criação de competências orientadas à inventariação e controlo rigoroso do paradeiro das obras e da sua assunção enquanto coleção de Estado.

Em 1996 é constituído o Instituto de Arte Contemporânea [IAC] que assume, sob a direção de Fernando Calhau, as competências de gestão da Coleção SEC. E em 2003 o Ministério da Cultura incumbe o IAC de realizar “o levantamento da totalidade das obras existentes e integrá-las num inventário único. […] O livro de registos das aquisições de obras de arte para esta coleção só havia sido aberto em 27 de janeiro de 1986 e foi encerrado a 1 de julho de 1992, data da extinção da DGAC. Conta com 1115 obras. Segundo as listas anexas ao referido protocolo teriam sido cedidas 848 obras à Fundação de Serralves, segundo esta entidade foram apenas 553 obras. Das 267 remanescentes às listas anexas ao protocolo com a Fundação de Serralves, 165 foram localizadas e 102 não o foram. Desde a entrada em vigor do protocolo, a Fundação de Serralves cedeu 92 obras a outras entidades. Uma lista de obras na posse do IMC conta com 1271 obras nesta coleção. Novo protocolo foi celebrado entre o Instituto das Artes e a Univ. Aveiro/ CM Aveiro, a 5 de Julho de 2006, que formalizou a cedência em regime de comodato de 262 obras de arte por um período de 10 anos” [3]. Uma vez mais, na reconstituição das tutelas, sua nomenclatura, orgânica e competências associadas, o rodízio administrativo conduzia a Coleção à sua dispersão institucional.

Por fim, em Julho de 2006, a direção do Instituto das Artes, com as direções do IMC e do MNAC-MC, determinou a apresentação de “uma proposta comum sobre a transferência da titularidade das coleções do Ministério da Cultura para o MNAC-MC, que assumiria todos os compromissos resultantes dos protocolos entretanto assinados para que uma entidade especializada na conservação, gestão e inventário de coleções desse o tratamento adequado à preservação do património nacional que constitui estas coleções” [4]. Este documento foi apresentado no ano seguinte, tendo recebido o despacho favorável da então Ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, mas nunca chegou a ser publicado por motivo da sua saída do governo, em Janeiro de 2008. A paradoxalidade das diferentes decisões ministeriais sobre o destino a dar à Coleção fazia esquecer o essencial, a importância da sua recuperação material e documental, que, para lá das muitas promessas, parecia impossível de realizar. Mas com a determinação do Ministro da Cultura António Pinto Ribeiro em constituir um grupo de trabalho que apresentasse até ao final de 2008 um documento final sobre a matéria, foi possível redigir e sustentar os argumentos que vieram a estar na base do despacho assinado por Barreto Xavier em Setembro de 2013.

Mas em Janeiro de 2011, todavia, a Ministra da Cultura Gabriela Canavilhas determinou a constituição de um último grupo de trabalho com o objetivo de atualizar o inventário da Coleção, propor uma programação itinerante e avançar com a atualização dos valores de cada obra, concretizando, por fim, o levantamento exaustivo que se impunha sobre o paradeiro e a determinação das tutelas ou das entidades depositárias que tinham à sua guarda o acervo, assim como a avaliação do respetivo estado de conservação e condições de exposição.

Recentemente, perante as lacunas reveladas pela Coleção do MNAC-MC e sendo este reconhecido pela DGPC (então liderada por Isabel Cordeiro) como “o único museu integralmente tutelado pelo Ministério da Cultura que centra a sua missão e objetivos programáticos na conservação, investigação, difusão, formação e consolidação de uma coleção de arte portuguesa centrada no período histórico abrangido por estas coleções”, o Secretário de Estado da Cultura fez publicar em Diário da República de 5 de Fev. de 2014 a afetação da Coleção SEC “à Direção Geral do Património Cultural, com incorporação das suas obras na Coleção do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado” [5].

Aquando da apresentação pública da ampliação do MNAC-MC à Rua Capelo, na manhã de 4 Fevereiro, Barreto Xavier exaltava: “Vamos finalmente ter um Museu do Chiado com a dimensão que ele precisa para trabalhar, dando-lhe a visibilidade que merece como museu nacional que é”. No mesmo artigo podia ler-se ainda: “depois de os espaços do convento serem adaptados às suas novas funções […] o MNAC poderá mostrar peças da Coleção [SEC], que tem mais de 700 obras de arte de qualidade variável, segundo Barreto Xavier, que estavam dispersas há décadas e que o Secretário de Estado da Cultura decidiu incorporar no museu em Julho” [6].

Aqui chegados, poderíamos hoje estar a comemorar o fim de um doloroso processo, depois de reunidas as condições para o estudo e divulgação da antiga Coleção SEC, assim como uma melhor articulação entre o programa de exposições temporárias e a exposição permanente, com base numa gestão mais equilibrada e consequente das coleções, assegurando desse modo o cumprimento da missão do MNAC-MC. Subitamente, porém, o Secretário de Estado da Cultura decidiu, a duas semanas da inauguração da tão ambicionada ampliação do museu, omitir todas as referências à incorporação da col. SEC no Museu do Chiado e, perante a nossa recusa em acompanhá-lo nesse esvaziamento institucional, revogar por fim o despacho anterior, desafetando do museu a coleção SEC, como se esta fosse apenas um joguete para cumprir caprichos pré-eleitorais. Até quando o MNAC-MC sofrerá os ditames ziguezagueantes dos responsáveis políticos deste país? Até quando estaremos à mercê das pressões e das influências de bastidores que conduzem um Secretário de Estado a revogar decisões justas e tecnicamente fundamentadas apenas para “esclarecer” agora, segundo o Gabinete do SEC, as dúvidas “suscitadas entre diferentes estruturas públicas da área da cultura e a Fundação de Serralves em relação à alocação e ao modo de gestão da chamada Coleção SEC”? Entre o absurdo da decisão e o ridículo do seu argumento, apenas nos resta denunciar e lamentar uma realidade aparentemente insuperável, guardando na memória o facto do MNAC-MC ter sido titular da Col. SEC entre 5 Fev. de 2014 e 6 Julho de 2015, justificando-se por isso a programação da mostra Narrativa de uma Coleção que hoje se inaugura, porém destituída já dos curadores que a conceberam e do sentido institucional que a fundou.

[1] Ibidem.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Pedro Lapa, op. cit.

[5] Cf. Diário da República, 2ª série, nº 25, 5 Fevereiro de 2014.

[6] Lucinda Canelas, “Museu do Chiado: uma ampliação para pôr fim a uma situação provisória com mais de 100 anos”, in PÚBLICO, 4-2-2014.

Historiador de Arte e Ex-Director do MNAC-MC (Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado)

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