“Não podemos perder mais uma vida”

O caso do poeta e rapper angolano Luaty Beirão esteve em discussão no Festival Literário Internacional de Óbidos. Rafael Marques disse que pediu ao jovem que visitou que terminasse a greve da fome.

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Manifestação pela libertação dos presos políticos no Porto Paulo Pimenta

Sentados no mesmo palco, três escritores africanos olharam para os 40 anos da independência dos seus países. O balanço é feito com a literatura como ponto de partida e com a política sempre em cima da mesa. No fim, um poema de Luaty Beirão, escrito quando tinha cerca de 20 anos: “Para muitos o mundo seria aborrecido se fosse eu que o criasse”.  “Haverá um desenlace?”, ficou a pergunta.

Neste sábado, ao princípio da tarde, o Folio–Festival Literário Internacional de Óbidos, que termina neste domingo, juntou o cabo-verdiano José Luiz Tavares, o angolano Rafael Marques e o moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, moderados pela jornalista Marta Lança. O caso dos 15 angolanos que estão detidos por alegadamente tentarem derrubar o Presidente José Eduardo dos Santos atravessou inevitavelmente o debate.

“Estes jovens são cabeças duras, não vão dialogar. Vão querer condená-los por coisas que não fizeram”, disse Rafael Marques. “Eu tenho feito apelos para que ele [Luaty] pare a greve da fome. Com esta causa, ele e os seus companheiros conseguiram fazer o que nestes anos ninguém conseguiu fazer e por essa razão não podemos perder mais uma vida.”

O escritor e jornalista saudou o facto de em Portugal - onde os angolanos “compraram os meios de comunicação social e os meios políticos, e esperavam que a sociedade se mantivesse silenciosa”  - se ter formado “uma onda de solidariedade extremamente importante, porque quebra esse silêncio e cumplicidade que sempre houve na sociedade portuguesa em relação aos abusos em Angola”. E adianta: “Esta situação só pode ter um desfecho: um Presidente que está há 36 anos no poder tem de sair”.

“Estamos a julgar pessoas pelo título” do livro que lêem, disse, referindo-se ao livro de Domingos  da Cruz, intitulado Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura: Filosofia para a Libertação de Angola, que apela à não-violência e serviu de pretexto à acusação do Ministério Público. E contou, que há alguns anos, também lhe aconteceu ter publicado um livro intitulado, No Coração do Inimigo, que foi retirado por causa do título e nem sequer se preocuparam “em ler o conteúdo”.

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O Folio juntou o cabo-verdiano José Luiz Tavares, o angolano Rafael Marques e o moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, moderados pela jornalista Marta Lança Folio

A literatura em Angola não tem um compromisso com a liberdade, apontou o autor de Diamantes de Sangue – Corrupção e Tortura em Angola, um livro que denuncia a corrupção entre as mais altas esferas do poder angolano e das empresas e entidades estrangeiras que negoceiam com o regime, pelo qual teve de responder em tribunal. “Há um silêncio” que só tem excepções com aqueles que vivem na diáspora como José Eduardo Agualusa ou Ondjaki.

“Há um discurso político a comanda a nossa vida, que nos remete sempre para a guerra, e para [o golpe] 27 de Maio. Todos os que ousam contestar o poder têm uma escolha: ou a violência ou a violência”.

Em Moçambique, “o número de escritores é bastante reduzido” e estes “não estão ligados ao poder como tal”, afirma Ba Ka Khosa, autor de Choriro. Mas há uma tentativa de os guerrilheiros que combateram pela independência e que agora estão no Governo apagarem o passado marxista e socialista. "Esse discurso já não lhes cai bem.”

“Há uma espécie de uma surdez progressiva” em relação ao tipo de poder, diz Ungulani Ba Ka Khosa a falar sobre a imprensa do seu país. “A classe média toda vai sugar ao mamilo do Estado”, diz, mesmo com a nova constituição presumia-se que surgisse uma classe na Academia. “Todos alinharam”, querem “estar com o papá”, disse. “É um alinhamento um pouco camaleónico, vai mais pelo tacho do que por relações políticas ou de outra natureza”, acrescenta Ungulani Ba Ka Khosa.

“Sinto que passados estes 40 anos já há possibilidade de podermos olhar para nós próprios”, depois de anos em que as elites se formaram no estrangeiro e de um discurso importado.

Cabo Verde é “um país improvável”, diz por sua vez José Luiz Tavares. A independência começou com “200 e tal escudos nos cofres” e o percurso destas quatro décadas “é um milagre”, lançou o escritor. “É muito difícil com os recursos que temos construir um país viável”. Ainda assim, “a nossa pobreza [de recursos] pode ser a nossa sorte”.

Em todo o caso, “a ideia de Cabo Verde como nação nasce na literatura, antes de ser uma ideia política”, por volta de 1936 com o movimento Claridade. “Antes de ser um país independente foi um país independente culturalmente”.

A taxa de alfabetização do país é um sucesso: 95%. Mas ao mesmo tempo, a primeira universidade pública tem dez anos, salientou. Os escritores em Cabo Verde “são muito apaparicados”, e simultaneamente “há uma enorme dificuldade material em publicar um livro”. Há cinco anos que o instituto do livro não edita um único livro, não aparecem novos escritores – ele, com 48 anos, foi “o último a aparecer com alguma visibilidade” (ao contrário na música, que a cada semana aparece uma grande voz em Cabo Verde). “A literatura exige uma sementeira, não se pode escrever da noite para o dia”, disse o poeta, autor de Cidade do Mais Antigo Nome, que brincou ao lamentar não ter os problemas de Rafael Marques que o poderiam levar a fazer grandes coisas.

O PÚBLICO está em Óbidos a convite do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos

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