Não ouves o som da chuva?

O Coro Gulbenkian foi a estrela da noite, num concerto que contou também com um excelente quarteto de solistas para interpretar com a Orquestra Gulbenkian uma das grandes oratórias da primeira metade do século XIX.

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Michel Corboz

No início, Elias não parece um tipo simpático. Então não é que, em tom autoritário, diz que “não haverá orvalho nem chuva a não ser quando eu disser”, como alguns arrogantes governantes de hoje? O que se segue é seca, fome e penúria para um povo inteiro, que tem de pagar pelos seus “pecados”.

Em nome do Deus único, é claro. Nesta narrativa do Antigo Testamento, Deus é coisa para temer e pouco para amar. Ciumento e vingativo, só ajudará os que dele têm medo e a ele se converterem. Mas a música do Elias de Mendelssohn (1809-1847), apesar de todo o ódio divino, leva-nos por belezas inesperadas, redenções e súplicas, no meio das chamas. Porque tudo se resume a uma “prova de fogo”: “O Deus que responder pelo fogo, esse será o Deus”. Os profetas de Baal, o “falso Deus”, serão barbaramente assassinados.

A oratória Elias é uma das grandes obras do género do século XIX. Recheada de música coral, ela fez as delícias do Coro Gulbenkian na noite de sexta-feira. O coro foi sem dúvida a estrela colectiva da noite (sem desprimor para uma Orquestra Gulbenkian bem dirigida por Michel Corboz), lançando chamas e incendiando ódios divinos, até à espectacular ascensão de Elias aos céus, num remoinho que o vem buscar depois da sua caminhada de quarenta dias e quarenta noites.

A segunda parte da oratória tem momentos particularmente delicados, com ternas melodias contrastando com a violência inicial. O musicólogo Charles Rosen, que admirava contudo esta obra grandiosa, chamava-lhe "kitsch". Mas quem acusa Mendelssohn de falta de "verdadeira religiosidade", ou fique apenas a discutir debalde o judaísmo e o cristianismo do compositor, talvez esteja a esquecer outros aspectos decisivos desta obra.

É que para Mendelssohn, por muito que lhe interessem os temas religiosos, é de uma opção estética que se trata: fazer jus a uma história da música passada, repescar a energia das oratórias de Händel e das paixões de Bach, para reinventar a seu modo a força destes barrocos.

Não foi ele que dirigiu em Berlim a Paixão Segundo São Mateus aos 20 anos, quando as grandes obras de Bach estavam meio esquecidas? A este Mendelssohn interessa o estilo fundamentalmente “épico”, apesar de alguns momentos dramáticos como o diálogo entre a Viúva e Elias, aliás muito bem interpretados por Ana Quintans (que trabalhou em detalhe a expressão vocal para cada diferente momento) e Víctor Torres (um impecável barítono argentino que cantou a personagem principal).

A contralto Helena Rasker começou com vibrato excessivo (seria o nervoso?), mas fez uma segunda parte com intervenções notáveis. Também o tenor Christian Elsner, afinadíssimo e de voz leve, se saíu bem deste Elias. O coro, podendo ser ainda mais certeiro e concentrado (um coro são todos e cada um!), foi o que deve ser em Elias – estruturante da dinâmica da obra, nervo central da sua energia de fogo, que comenta, repete e sublinha, dos corais “à Bach” até às tempestades românticas. Apesar de tudo, Elias lá chama a chuva. “Não ouves o som da chuva? Não vês nada a vir do mar?” Chuva redentora, e a terra molhada. Um final feliz, embora os que mandam lá continuem.

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