António Lamas não se demitirá do CCB: "Não está na minha natureza"

O presidente do CCB reage à decisão do Governo de acabar com a estrutura de missão que criou o plano estratégico para Belém. E diz que a casa que dirige tem de depender menos do Estado e precisa de um director de programação.

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António Lamas esteve ligado à génese do Centro Cultural de Belém, mas só é seu presidente desde Outubro de 2014 NUNO FERREIRA SANTOS

Nasceu na Rua da Junqueira, na casa onde ainda hoje vive. Esteve envolvido na criação de um plano de salvaguarda para a área Belém-Ajuda na década de 1980 e no lançamento do Centro Cultural de Belém (CCB), inaugurado em 1993. Hoje António Lamas é o seu presidente. Alguns diriam, na sequência das declarações do ministro da Cultura, João Soares, numa entrevista recente ao semanário Expresso, que “ainda” é o seu presidente.

Depois de o Governo socialista ter decidido extinguir a Estrutura de Missão da Estratégia Integrada de Belém, chefiada por Lamas e encarregada pelo anterior Governo de coligação PSD-CDS de criar um plano cultural para esta zona nobre da cidade, João Soares deu a entender que esperava um pedido de demissão do presidente do CCB. Um pedido que, segundo o adjunto do ministro da Cultura, Horácio Vale César, ainda não chegou. Um pedido que, segundo António Lamas, não chegará.

“Não me demito quando acredito em alguma coisa. Não está na minha natureza. E eu acredito que o CCB tem capacidade para gerar mais receita e depender menos do Fundo de Fomento Cultural, acredito que pode ganhar públicos e ser mais importante do que é hoje para a cidade e para o país”, disse ao PÚBLICO António Lamas esta quarta-feira, dia em que foi publicada em Diário da República a resolução do Conselho de Ministros de 18 de Fevereiro que extingue a equipa por ele chefiada e que tinha por objectivo criar uma estratégia capaz de harmonizar a gestão de museus, palácios, jardins, monumentos e outros equipamentos pertencentes a diversas entidades públicas e privadas de Belém. “Mas também sei que os lugares que exerço não me pertencem. São públicos. E cabe a quem de direito decidir quem os ocupa”, acrescentou, fazendo questão de sublinhar que não pertence a nenhum partido, que não tem nem nunca teve ambições políticas e que já foi nomeado para cargos públicos por governos PS e por governos PSD ou de coligação (PSD-CDS).

Do Ministério da Cultura a resposta às perguntas do PÚBLICO chegou por email e deixa antever um afastamento do presidente do CCB: “Apesar de António Lamas ter associado, em declarações públicas, a permanência nas suas funções à implementação do chamado 'Eixo Belém-Ajuda' e de este projecto ter sido revogado no Conselho de Ministros da semana passada, o ministro da Cultura não recebeu qualquer pedido de demissão ou indicação de colocação do lugar à disposição. Tendo em conta a sua  pública reprovação do referido plano, o ministro agirá em conformidade com a lei.”

Na referida entrevista, João Soares defendera já que as ideias de Lamas e da sua equipa para aquela que é a zona monumental mais visitada do país eram “um disparate total”, que tinha já sido gasto “dinheiro à fartazana” a propósito do plano para o eixo e que não podia aceitar que, em todo o processo, a Câmara Municipal de Lisboa, presidida pelo socialista Fernando Medina, não tivesse sido ouvida. “Quem fez isto devia tirar as devidas consequências”, acrescentara.

Sem querer entrar no jogo das respostas directas ao ministro, o presidente do CCB refuta, no entanto, algumas das acusações: “Reconheço a total legitimidade do Governo para extinguir a estrutura de missão, mas não aceito a crítica, injusta, de que o plano que ela propõe tenha sido feito sem ouvir a autarquia”, diz Lamas, 69 anos, escusando-se a nomear os técnicos e vereadores com quem se reuniu, ou com quem se reuniram elementos da sua equipa. Precisa, no entanto, que no decorrer dos trabalhos chegou a haver contactos, inclusive, entre o anterior Governo e a câmara.

“Eu próprio me reuni com vereadores. A câmara aparece citada de duas em duas páginas [na proposta de Plano Estratégico Cultural da Área de Belém, publicada numa brochura de 35 páginas]. Alguém imagina que se pudesse pensar num plano destes sem falar com a autarquia e com a Administração do Porto de Lisboa [que tem a seu cargo a zona entre a linha do comboio e o rio]?”, pergunta, lembrando que a proposta não implica apenas conciliar a gestão de museus e monumentos; implica mexer na envolvente, no espaço urbano. “Além disso, seria impensável que uma resolução do Conselho de Ministros [a que cria a estrutura de missão, de Junho de 2015] propusesse algo que desrespeitasse a lei, que atropelasse o poder autárquico.”

O PÚBLICO tentou ouvir o presidente da câmara sobre esta matéria, endereçando-lhe uma série de perguntas, mas até ao momento não obteve qualquer resposta do gabinete de Fernando Medina.

A "nova missão"

António Lamas diz ter entregado o plano para o eixo Belém-Ajuda a João Soares, poucos dias depois de este ter chegado ao ministério, tendo pedido na mesma altura que fosse marcada uma sessão pública para a sua divulgação, que incluiria uma apresentação sobre o futuro e as necessidades do CCB, algo que nunca chegou a acontecer. Até hoje, garante, aguarda a aprovação do plano de actividades da casa para este ano, razão pela qual não foi ainda feita uma conferência de imprensa para anunciar a programação até Dezembro.

“Este plano foi exaustivamente pensado e discutido, fizemos muitas consultas com as entidades envolvidas. Nada disto é irreflectido. Tenho esperança de que venha a ser executado um dia, que não fique na gaveta.”

As reservas quanto ao facto de a autarquia não ter sido consultada vêm expressas na resolução publicada em Diário da República. Dela consta uma outra justificação para a extinção da estrutura de missão de Belém  o facto de, por inerência, o presidente do CCB estar encarregue da gestão e da coordenação deste novo órgão, o que, na opinião do actual Governo, pode vir a “comprometer a missão e o papel daquele equipamento cultural no quadro da sua intervenção prioritária”.

“Prejudicar o CCB? Eu seria a última pessoa a fazer uma coisa dessas. Sei bem quais são as suas prioridades, que papel se espera que cumpra, porque fui eu que escrevi o programa do CCB”, contrapõe Lamas. “Eu estava lá antes de ele nascer e, apesar de não ter tido nenhumas responsabilidades na sua gestão até 2014, tenho-as hoje, sei como funciona ou como devia funcionar.”

António Lamas chegou em Outubro de 2014 ao CCB e desde aí tem vindo a lançar uma série de medidas que, diz, visa optimizar a gestão da casa e torná-la mais “transparente” e “sustentada”. Medidas que, reconhece, são muitas vezes “pouco populares”, sobretudo as que implicaram rescindir contratos ou cortar complementos de ordenado aos funcionários.

“Para mim o CCB e Belém são indissociáveis”, diz Lamas, voltando a sublinhar que o plano estratégico que apresentou em Agosto do ano passado não era apenas uma maneira de criar uma nova dinâmica naquela que diz ser “o sítio mais extraordinário de Lisboa” – era um instrumento para relançar o CCB com uma “nova missão”, capaz de garantir a sua sustentabilidade nos próximos 20 anos.

Essa “nova missão” foi precisamente o que fez com que, no meio cultural, se começasse a temer pelo futuro do CCB enquanto casa de criação contemporânea, pondo-se a hipótese de que Lamas o visse apenas como um centro de operações na gestão do eixo Belém-Ajuda, descurando cada vez mais a sua programação, já muito afectada.

“O plano é indispensável, tanto para Belém como para o CCB. O problema de sustentabilidade desta casa é uma coisa séria. Reduzir a sua dependência de subsídios [do Estado], que são cada vez mais pequenos, é uma necessidade óbvia, absoluta”, defende Lamas, lembrando que sem dinheiro não há forma de a instituição assumir o seu papel no incentivo à criação e na divulgação das várias artes.

No Orçamento do Estado para 2016, a verba destinada ao CCB é de 19 milhões de euros, um crescimento de quase 2,5 milhões face ao anterior, o que traduz um dos aumentos mais significativos entre as instituições da esfera do Ministério da Cultura. Lamas explica assim esta evolução orçamental: “É verdade que esse aumento existe, mas ele vem de uma estimativa de crescimento das receitas próprias e não de uma maior dotação do Estado. Só teremos mais [dinheiro], se, internamente, formos capazes de gerar essa receita com as nossas actividades.”

Sem o plano, explica este professor catedrático de Engenharia no Instituto Superior Técnico, tudo será muito mais difícil, mas não impossível. É por isso que não se demite, mesmo depois de ter afirmado publicamente que aceitara a presidência do CCB porque com ela vinha a missão de repensar a zona de Belém, beneficiando da experiência que tivera à frente da empresa que gere os monumentos de Sintra, a Parques de Sintra – Monte da Lua. “Acredito que o CCB pode beneficiar do plano, mas o CCB não é o plano.” E o que é que isso significa? “Que, se o Governo não quer aprovar o plano, o CCB terá de encontrar outras formas de garantir a sua sustentabilidade e de ganhar maior protagonismo na actividade cultural, de ser mais forte, mais dinâmico.”

Para que o CCB possa cumprir estes objectivos, precisa de uma gestão mais transparente e eficaz, advoga, precisa de fazer mais dinheiro com as suas actividades, tanto a cultural como a comercial. E isso pode passar, exemplifica, pela sua ampliação para poente, com a construção dos módulos 4 e 5, previstos no seu projecto inicial, a serem ocupados por um hotel e lojas. “Podem ser concessionados e ser uma fonte de receita interessante. Não acho que seja útil ser o CCB a promover a sua construção, mas pode procurar quem o faça”, diz, admitindo que está a “estudar intensamente” esta hipótese, que pode “ir para a frente, claramente, sem o plano”.

Isto não significa, no entanto, que Lamas tenha deixado de acreditar na proposta elaborada e na sua exequibilidade. Uma proposta que, apesar de disponível no portal do Governo desde Setembro, “curiosamente nunca foi contestada na sua substância”: “O que oiço dizer é que não pode ser aplicado porque a câmara não foi consultada… Parece-me que é estranho que se queira deitar fora uma proposta sem se dizer sequer porque é que ela não é válida, porque é que ela não interessa.”

Se há um outro plano estratégico ou de intervenção para o eixo Belém-Ajuda, da responsabilidade da autarquia, Lamas não o conhece. O PÚBLICO procurou saber junto da câmara municipal que projectos tem para aquela zona da cidade, mas sem sucesso.

Os custos

Os custos já tidos na concepção desta estratégia que o Governo acaba de abandonar rondam os 220 mil euros. A verba foi aplicada nos estudos e na elaboração do plano, com consultas a técnicos de áreas como economia, transportes e urbanismo (133.500 euros), e na divulgação dos equipamentos culturais de Belém, com a produção de um site, aplicações para smartphones e tablets e infografias (84 mil euros). Custos autorizados pela tutela, afirma António Lamas, à data o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier.

“Grande parte destas verbas, assim como de outras destinadas a obras já feitas para tornar o CCB mais acessível a pessoas com pouca mobilidade, deverá vir de fundos europeus.” Lamas diz “deverá”, porque as verbas em causa ainda não chegaram. Dizem respeito a candidaturas ao Programa Operacional da Região de Lisboa (POR Lisboa), que funciona com financiamento de Bruxelas. Para já, reconhece, as contas foram pagas com dinheiro do CCB, incluindo o levantamento arquitectónico do Jardim Botânico Tropical, instituição com a qual não tem qualquer ligação física nem programática. “É verdade que se recorreu ao CCB, mas o dinheiro será reposto quando as verbas do POR Lisboa chegarem”, justifica, garantindo que a oferta cultural da casa não foi afectada por estes gastos adicionais e que a decisão do Governo de acabar com a estrutura de missão e, com ela, de pôr fim ao plano para o eixo Belém-Ajuda “não compromete” o financiamento europeu.

Quanto à oferta cultural do CCB, Lamas admite que tem vindo a perder protagonismo, mas defende que pode recuperá-lo se for capaz de se voltar para fora, de estabelecer parcerias com instituições como a Gulbenkian, o Teatro Nacional de S. Carlos, a Casa da Música e a Companhia Nacional de Bailado. “Precisamos de um director de programação, creio que isso tornaria as coisas mais fáceis.”

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