Não houve The River na íntegra, mas houve Springsteen por inteiro

Springsteen não precisou de falar muito para que o ouvíssemos claramente. Acompanhado por uma E Street Band inspiradíssima, fez no primeiro dia do Rock In Rio, quinta-feira, uma viagem por todos os recantos da sua criatividade. Viram-no 67 mil pessoas.

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Estiveram no Parque da Bela Vista 67 mil pessoas AFP/Patrícia de Melo Moreira
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Enric Vives-Rubio
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Festivaleiros no Rock in Rio Enric Vives-Rubio
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Festivaleiros no Rock in Rio Enric Vives-Rubio

A genuinidade com que encara o palco, aliada à sua mestria e à da banda que o acompanha, reunido isso à obra vasta e à experiência de décadas, contribuem para que, nele, nada possamos tomar por garantido. Bruce Springsteen e a E Street Band não tocavam juntos há dois anos quando se reuniram, praticamente sem pré-aviso, para uma série de concertos motivados pelas reedição de The River, um dos seus álbuns mais celebrados.

Nos Estados Unidos, The River foi interpretado na íntegra e acrescido de uma série de canções obrigatórias e raridades que rodavam de concerto para concerto. À chegada à Europa, a Espanha, onde deu dois concertos há poucos dias, The River predominava, mas nem as canções desse álbum foram as mesmas nas duas datas, nem o restante alinhamento era coincidente – excluindo, claro, obrigatórias como Dancing in the dark ou Glory days.

Quinta-feira, no primeiro dia do Rock In Rio Lisboa, festival a que Springsteen regressou quatro anos depois, os 67 mil espectadores presentes (números avançados pela organização) não acompanharam o guião previsto. As passagens por The River foram escassas, suplantadas pelas visitas a Born in the USA, o que até combinou bem com as bandeiras americanas com "Boss" no centro, em plena actividade “guitarrística”, que vimos decorarem as costas de tantos no Parque da Bela Vista.

Ainda assim, diríamos que, só por The river, o tema título, canção de angústia e desolação em que Springsteen se torna um com os seus antecedentes Bob Dylan e Woody Guthrie, já tudo teria valido a pena: o impacto emocional provocado na plateia, enquanto se soltavam as palavras e o sopro da harmónica, pareceu de igual dimensão ao sentido pelo homem que em palco, olhos fechados e braço direito erguido, interpretava a canção que editou em 1980. Exageramos, naturalmente, mas esse momento, surgido sensivelmente a meio do alinhamento do concerto, foi um dos mais marcantes de uma actuação em que a máquina Springsteen e E Street Band se mostrou oleada e vibrante como sempre – ou seja, criando a ilusão que esse sempre tem, na verdade, a vitalidade de uma primeira vez.

Numa edição do Rock In Rio Lisboa que, quanto ao cartaz do palco principal, será a menos atractiva dos seus 12 anos de história portuguesa (faltam os nomes transversais incontestados, históricos reverenciados ou fenómenos recentes de mérito reconhecido que têm sido a marca do festival), Bruce Springsteen destaca-se com naturalidade – e autoridade.

No palco Vodafone, dito secundário mas onde abunda música que marca o pulsar do presente, o dia da estreia mostrou-nos um concerto muito promissor do duo portuense de punk'n'roll The Sunflowers. Mostrou uns Keep Razors Sharp cada vez mais senhores dos seus domínios eléctricos e uns Black Lips que, entre uma cuspidela para o ar e um hino geracional como Bad kids, se confirmam tão entusiasmantes quanto inspiradores: é colocar os Ramones, as colecções de garage Nuggets e Pebbles, os Beatles de Hamburgo e uma saudável dose de loucura só deles numa misturadora, agitar sem receio, e o resultado é aquela música que centenas aplaudiram e dançaram com um sorriso feliz.

No Palco Mundo, o principal, viu-se uma história do Rock In Rio, de 1985 até à actualidade, que é mais sequência de canções das bandas que se destacaram em cada uma das edições, interpretadas pelos actores e bailarinos, do que um verdadeiro musical. Seguiram-se os galeses Stereophonics e o seu rock massificado, sem marca distintiva – resumo: tocam canções que pedem estádios, são britânicos, contam cerca de duas décadas de carreira e chamam-se Stereophonics –, e, depois deles, chegaram os Xutos & Pontapés para, uma vez mais, tocarem os clássicos feitos hinos que todos têm na ponta da língua como se se tratassem de novidades acabadas de revelar. É impressionante como, concerto após concerto, conseguem provocar esse efeito nas multidões que os seguem.

Depois de Contentores ou Não sou o único, depois do realismo social de Ligações directas, de Homem do leme, de Chuva dissolvente, de Maria e da Casinha com que se despediram, soltou-se inesperadamente o fogo-de-artifício, irrompeu por todo o recinto o ruído dos stands das marcas patrocinadoras e suas actividades promocionais e, enquanto se esperava o prato forte do dia, o público deu uso aos omnipresentes sofás vermelhos insufláveis.

Cerca de três horas depois, dezenas de milhares estarão a pular e a cantar com a banda em palco a irresistível Twist and shout celebrizada pelos Beatles e pelos Isley Brothers no início dos anos 1960, a mesma com que Bruce Springsteen encerrou o concerto de há quatro anos. Ao contrário de há quatro anos, porém, desta vez não haverá encore.

Os músicos da E Street Band abandonam o palco. Springsteen fica. Sozinho com a guitarra e a harmónica, despede-se com This hard land, folk pungente, história de todos os mesmos deserdados em todas as mesmas depressões. Enquanto o público se começava a dirigir para as saídas do Parque da Bela Vista, e tendo em conta aquele final, nada podia ser mais adequado que a força do gospel, sem fogo-de-artifício, que se ouvia das colunas de palco. Era o fim de um concerto em que todo o discurso pertenceu à música e aos versos nela cantados. À parte alguns “obrigado”, o que mais ouvimos a Springsteen entre canções foi a contagem (“One, two, three, four”) que lhes dava sinal de partida.

Ainda os vídeos promocionais passavam nos ecrãs quando subiu ao palco a E Street Band, versão reduzida, que protagoniza a actual digressão – dentro da escala Springsteen, entenda-se: falamos, afinal, de nove músicos. “One, two, three, four” e chega Badlands, primeiro clássico de um concerto em que eles foram abundantes. Impressiona a urgência e o prazer posto na função por aqueles veteranos em palco – o líder, recorde-se, conta 66 anos. Impressiona como se entregam ao momento. Max Weinberg, o extraordinário baterista, parece por vezes possuído pelo espírito incontrolável de Keith Moon. Os guitarristas Steve Van Zandt e Nils Lofgren juntar-se-ão a Springsteen a percorrer a passadeira estendida desde o palco, rodopiarão como dervixe eléctrico (o segundo), partilharão o microfone do "Boss" com fervor e sentido de harmonia apurado (o primeiro). Jake Clemons, que substituiu o histórico saxofonista Clarence Clemons depois da morte deste em 2011, parece ter herdado o poder do sopro do tio, homenageado através de imagens de arquivo nos ecrãs (tal como o teclista Danny Federici, falecido em 2008). Mais discretos, a guitarrista e violinista Soozie Tyrell, o baixista co-fundador da E Street Band, Garry Tallent, e o teclista Roy Bittan. Todos juntos mostram-se um portento, um baú sem fundo das mais diversas tradições da música americana – e seus familiares próximos. Transformam o rock'n'roll de Buddy Holly e Chuck Berry em hinos pop, conduzem o blues pelos mesmos caminhos que os Rolling Stones de Exile on Main St, montam uma parada soul com Springsteen como mestre-de- cerimónias, mergulham nas profundezas da alma das personagens cantadas na folk.

Max Weinberg confessou recentemente que acaba cada concerto como um pugilista acabado de sair do ringue, e nota-se: mas não há qualquer vestígio de sofrimento, quer nele, quer nos restantes. Tudo prazer e entrega ao momento e à comunhão com quem têm perante si. Ouvimos Darkness on the edge of town e ouvimos Hungry heart. Ouvimos a Because the night oferecida a Patti Smith e ouvimos The promised land, depois de Springsteen voltar de junto do público com um cartaz onde alguém escrevera aquele título. Vemos Springsteen abraçado aos fãs e uma mulher saída da plateia dançar brevemente com ele Dancing in the dark. Do alinhamento fazem parte Out in the street, I'm on fire, Working on the highway, Downbound train ou Spirit in the night. Fazem parte, em sequência, os obrigatórios Born in the USA, Born to run, Glory days e a referida Dancing in the dark.

Nelas, Springsteen é festivo e reflexivo, é espalha-brasas e cantautor intimista. É cada uma das personagens que canta, do êxtase à depressão, da vontade em escapar às armadilhas da vida à desistência que nunca chegará verdadeiramente. Em The River, o álbum duplo cuja reedição justificou esta digressão, tudo isso se conjugava. Quinta-feira, não o ouvimos na sua totalidade, como nas datas americanas, nem o tivemos como base do alinhamento, como em Espanha. O seu espírito, porém, acabou por estar presente no Parque da Bela Vista – ou seja, tivemos Bruce.

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