Não é software, é arte

À 3ª edição, o Lumina colocou Cascais na rota internacional dos festivais de luz. Nuno Maya e Carole Purnelle, do atelier OCubo, são os criadores do evento e de obras em que as fachadas ganham vida. Com eles, uma parede pode ser o que sonharmos.

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Não é software, é arte Vera Moutinho

O Arco da Rua Augusta está a arder. “Criámos uma maquete do Arco e pegámos-lhe mesmo fogo. Aquilo é fogo real”, conta Nuno Maya, um dos fundadores do atelier OCubo, que nos últimos dez anos se tem dedicado a criar obras em que a luz é a matéria-prima.

As chamas consomem a madeira das janelas, parte da fachada começa a ruir. De repente, a água entra em cena, deixa inscrito um nome: Marquês de Pombal. O monumento que começou a ser pensado logo após o terramoto de 1755, em Lisboa, só ficaria concluído em 1875. É parte da história do Arco da Rua Augusta, e também das quatro figuras que o habitam - Nuno Álvares Pereira, Viriato, Vasco da Gama e Marquês de Pombal – que foi contada o ano passado no espectáculo de vídeo mapping Arco de Luz, que Nuno Maya e Carole Purnelle levaram ao Terreiro do Paço. No atelier, em Sintra, há ainda uma caixa de plástico com a etiqueta “Piro Terreiro do Paço”: arcadas e janelas do Arco cuidadosamente embaladas. Reais - e de carne e osso - são também os bailarinos com que trabalharam para criar o espectáculo quatro elementos que OCubo estreia esta sexta-feira na 3ª edição do Festival Lumina.

Inspirados pelas interpretações de textos budistas dos elementos Ar, Fogo, Água e Ar, idealizaram um espectáculo de vídeo mapping que vai ser projectado em 360º na Cidadela de Cascais, onde quatro personagens reais dançam sobre a fachada. Dois bailarinos da Companhia Nacional de Bailado, um artista de circo aéreo e uma bailarina de natação sincronizada foram filmados meses antes e surgem numa Cidadela feita palco virtual representando cada um dos elementos naturais.

Frente ao ecrã, Nuno mostra-nos cada passo até chegarmos ao Animatic, o guião animado de todo o espectáculo, com anotações para cada cena. “É tudo o que vai acontecer no filme sem termos de fazer o filme ainda”, explica. “Vêem como a bailarina entra e sai da janela? Ela interage com a estrutura do edifício, parece que traz a água com ela”, explica Nuno.

A ambição é a de ser convincente na ilusão e criar algo de raiz que não é apenas composto por programação e efeitos digitais. Pôr a mão no real antes de partir para o virtual. Nuno pensou no guarda-roupa que os bailarinos teriam de usar para que a dança na fachada fosse real e dinâmica, e mergulhou na piscina do Jamor para filmar a bailarina de natação sincronizada.

A obra 4 elementos, que conta ainda com composições de luz do finlandês Kari Kola e banda sonora original do francês Sylvain Moreau, é mais uma criação de Nuno e Carole, para quem a tecnologia é apenas uma ferramenta: “Se dominarmos a técnica podemos apoiar a nossa criação sobre ela sem pensar muito nisso. É como um bom bailarino”, diz Carole. Prémio BES Revelação em 2006, Nuno Maya diz que vai “à procura de tecnologia para resolver as ideias que quer pôr em prática”. “Não é software, é arte”, sublinha Carole.

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"Cloud", de Caitlind R. C. Brown e Wayne Garrett (Canadá), no Largo Doutor Passos Vela

 Do analógico ao digital
Para Nuno Maya, tudo começou na adolescência: “Comecei a trabalhar com projectores de slides do meu pai para mapear esculturas que fazia em barro. Fotografei uma estátua, mandei revelar o slide, pintei a estátua nesse slide e projectei a luz colorida sobre a escultura”, explica. Vídeo mapping não fazia, ainda, parte do vocabulário.

Chamou-lhe Pinturas de Luz, marca que viria a registar mais tarde. Mas o princípio era o mesmo: mapear uma superfície e projectar nela imagens animadas. Chegou a pedir à mãe, que trabalha na área da farmácia, para levar para casa reagentes químicos: “Pegava em acetatos, cortava à medida do slide com caixilho e fazia saquetas de slides em 3D. Nesses slides introduzia misturas com seringas, reacções químicas que faziam efeitos que depois víamos projectado. São alguns efeitos analógicos que criei na altura”, recorda Nuno.

Depois veio a formação em animação 3D e um mestrado em Angoulême, França, onde conheceu a congo-belga Carole Purnelle que estudava Multimédia da Arte. Uniram competências e caminhos: Carole viajou para Portugal com Nuno e começaram a trabalhar em projectos multimédia, com um pé na vídeo-arte e no vídeo mapping, sem esquecer o espectador. “A arte participativa é um bocado a nossa marca de fábrica”, diz Carole. E há provas disso no Lumina, naquele que consideram ser o maior projecto do atelier OCubo até hoje, e que foi eleito este mês pelo jornal britânico The Guardian um dos 10 melhores festivais de luz da Europa.

Participar e interagir
O Festival arrancou em 2011, em Sintra, mas mudou-se para Cascais o ano passado, pela dimensão que o evento ganhou e pelo simbolismo: foi na vila de Cascais que foi feita a inauguração pública eléctrica em Portugal, em Setembro de 1878. Mas foi para assinalar os 650 anos da vila que Nuno e Carole criaram a peça 650: 650 selfies dos munícipes de Cascais que vão ser projectadas na fachada da câmara municipal.

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"4 Elementos", do atelier OCubo, na fachada da câmara de Cascais

Para além de obras participativas há criações com que o público pode interagir, como a parede de dezenas de milhares de LED do artista francês Antonin Fourneau, que é iluminada em contacto com água. Em Water Light Graffiti é possível, através de pistolas de água, pincéis ou mãos molhadas, deixar mensagens efémeras. 

No Largo do Prior, a instalação Ombrascope remete para uma maior intimidade. Criada em Lyon, para um dos mais conhecidos festivais de luz, é uma obra onde fios de arame revelam rostos na escuridão, através da luz e de um jogo de sombras. Em Cascais, um dos objectivos é valorizar ícones do património histórico da vila. A luz azul iluminará um percurso de três quilómetros que passa por espaços com a Câmara Municipal, o Farol de Santa Marta ou a Casa das Histórias Paula Rego. A arquitectura é uma das “actrizes” principais.

“Não é como fazer um filme para a televisão em que o formato é sempre igual. Temos sempre de ter em conta a arquitectura. Cada fachada é trabalhada em 3D e depois aplicamos um mapping a essa fachada. É também isso que é apaixonante." E por isso foi tão aliciante um pequeno projecto em Cacela Velha, no Algarve, como os grandes espectáculos que exibiram no Terreiro do Paço nos últimos dois anos, onde recriaram, por exemplo, um circo, mas também os momentos que marcaram o 25 de Abril, numa obra que assinalou os 40 anos da revolução dos Cravos e foi vista por mais de 100 mil pessoas.

A dimensão dos projectos tem feito a equipa crescer. Hoje são uma empresa com 12 pessoas, com colaboradores externos que na altura do festival Lumina chega a uma centena. Fazem parte daquilo a que chamam a “rede dos festivais da luz” e é lá que encontram grande parte dos artistas que depois convidam para vir até Cascais. “Conhecemos todos os artistas pessoalmente”, diz Carole, para quem o processo de curadoria é estimulante.

No dia em que visitámos o atelier, havia uma caixa de cartão em cima da mesa. “São os slides de grande dimensão do André Letria. Fizemos uma interpretação do trabalho dele, ele deu-nos muitas ilustrações e criámos oito painéis gigantes para a Cidadela “, conta Carole. “Não tem movimento mas nem tudo tem de ter movimento. Até é muito mágico ter essas ilustrações paradas”.


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"Oculus Lucis", de Teresa Mar (Áustria), no Farol de Santa Marta
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