(Não é possível) travar o vento com uma peneira

Os mitos podem forjar nações, mas é a sua contestação que as fortalece. Gungunhana já foi um mito em Moçambique e em Portugal. No último romance de Mia Couto é apenas um homem.

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Esta trilogia romanesca é (quanto aos seus dois primeiros volumes) menos permeada pela inventividade linguística que tem caracterizado Mia Couto, dela estando ausentes os tão celebrados “miacoutismos” Paulo Pimenta

A carta fictícia está datada de 1 de Outubro de 1895 e o remetente é um fictício Germano de Melo, sargento português punido, por haver participado na revolta portuense e republicana de 31 de Janeiro de 1891, com o envio para um remoto posto militar nas ardentes planícies da África Oriental portuguesa, onde se viviam tempos não menos tumultuosos. O destinatário é o histórico tenente Ayres de Ornelas, que alcançou glória militar em Marracuene e Coolela, e em outras batalhas históricas das “campanhas de pacificação” de Gaza. “Que filhos teríamos” indaga retoricamente o sargento, a propósito da sua paixão por uma jovem negra chamada Imani – que é a narradora principal dos dois volumes até agora publicados da “trilogia moçambicana” de Mia Couto (Beira, 1955) intitulada As Areias do Imperador. E logo Germano de Melo transcreve a resposta de Bibliana, profetisa adoecida da “particular cegueira” de ver pelos olhos dos deuses: “Que importa a cor da pele dos que nascerem? Gungunhane terá netos brancos portugueses e os portugueses terão netos africanos! Contrariar essa inclinação é travar o vento com uma peneira. O Tempo […] é um grande misturador de sementes.”

Gungunhane (ou Gungunhana) – que é, evidentemente, o imperador do título genérico da trilogia romanesca do escritor moçambicano – foi o último rei do Estado vátua de Gaza e será aprisionado por Mouzinho de Albuquerque (um português raro, certamente, por contrário à política do “quanto mais devagar melhor”) no seu refúgio em Chaimite, no dia 28 de Dezembro de 1895. O feito demorou uma semana até ser noticiado em Lisboa (bons tempos…), mas deu brado em Portugal, que havia sido humilhado pelo Ultimato inglês, e ecoou na restante Europa, tanto por causa da lenda heróica e letal que aureolava o “Leão de Gaza”, quanto pelas suas consequências geopolíticas: sem essa derrota dos vátuas, é provável que Moçambique não existisse hoje com a configuração que lhe conhecemos.

Para inglês ver

Poder-se-á dizer, com efeito e com verdade, que as campanhas portuguesas “de conquista e pacificação” em África foram feitas para inglês ver. Recorde-se que, em 1885, em Berlim, as potências coloniais europeias haviam feito depender a partilha de África entre si de uma efectiva capacidade de exploração e controlo dos territórios em disputa. À intenção portuguesa de unir Angola e Moçambique (o Mapa Cor-de-Rosa) opusera-se, em 1890, a Inglaterra (o Ultimato), e as duas potências disputavam também o território controlado por Gungunhana. Por sua vez, o imperador de Gaza não descartaria um aliado europeu que o ajudasse a derrotar os vários inimigos internos. É neste contexto, de sucessivas e contraditórias alianças e traições, que se pode compreender a relevância do aprisionamento do chefe vátua que, com sete das suas inúmeras mulheres e outros elementos do real séquito, seria exilado para os Açores (Terceira), onde veio a morrer, em 1906. O seu captor, o trágico oficial de cavalaria Mouzinho de Albuquerque, suicidara-se cerca de cinco anos antes.

Em 2005, o Museu Militar de Lisboa assinalou os 110 anos decorridos desde o histórico episódio de Chaimite. Entre os presentes, lê-se na imprensa, estavam descendentes portuguesas de Gungunhana. Assim se confirmou a profecia de Bibliana. Mas o processo de mitificação institucional do imperador de Gaza culminara havia já vinte anos, quando o então Presidente moçambicano Samora Machel obteve a solene trasladação para Maputo dos supostos restos mortais de Gungunhana. Supostos porque, como em tantos outros casos semelhantes, a autenticidade do traslado não foi cientificamente comprovada, não sendo improvável que na urna enviada para Moçambique seguissem apenas as “areias” de que fala o título da vasta trilogia de Mia Couto (os primeiros dois volumes somam já mais de 850 páginas).

A produção e instrumentalização política de mitos fundadores comunitários é certamente uma doença infantil do processo de afirmação identitária de nações e Estados. A sua contestação, ou desconstrução, não será menos útil e menos necessária, sendo até mesmo, provavelmente, condição e prova da sua sobrevivência. Se assim for, Moçambique vai no bom caminho. E se a contestação de Gungunhana enquanto ferramenta ideológica de unificação política do país já não é nova, a desconstrução do mito através da ficção tem também precedentes, podendo referir-se aqui o romance Ualalapi (1987), de Ungulani Ba Ka Khosa. Lembram alguns – sem novidade que se note, aliás – que o fratricida Gungunhana alcançou o poder através da violência e do crime, e que durante uma década governou com mão de ferro o seu império, colonizando, explorando e oprimindo outros grupos étnicos autóctones do Sul de Moçambique. Será o caso, em A Espada e a Azagaia, dos vatxopi (ou chopes), povo de onde provém a bela e muito jovem Imani (15 anos à data dos acontecimentos narrados). Bastará dizer que no “Resumo do primeiro volume”, que inaugura A Espada e a Azagaia, se lê: “Os Vatxopi são um povo ocupado e massacrado pelo domínio dos Vanguni [ou vátuas] e que estabeleceram, por esta razão, uma aliança de cooperação militar com as autoridades portuguesas.”

O que é mais interessante, porém, neste romance de Mia Couto, é que a humanidade de Gungunhana cresce na inversa proporção do emagrecimento do mito. No final do segundo volume da trilogia (no primeiro volume, publicado em 2015 e intitulado Mulheres de Cinza, o imperador de Gaza é uma presença ausente que se manifesta só enquanto remoto detonador de uma sequência de tragédias na família da protagonista narradora), o temido e lendário “Leão” é apenas um homem fragilizado e amedrontado. E perplexo com a infinita e universal competência para a traição: “De que vale ter milhões de súbditos, se eles não são fiéis? De que vale possuir centenas de mulheres, se nenhuma delas é realmente nossa? De que vale ser coroado imperador se os que hoje te saúdam venerarão com maior devoção aqueles que te vão derrubar?” (p. 364) Igualmente o lamenta a rainha-mãe: “Tenho pena do meu filho […]. Todos lhe obedecem, ninguém lhe é leal.” (p. 367) Talvez se possa convocar aqui um “dito” atribuído a outra personagem, o padre Rudolfo Fernandes: “Eis a pobreza do nosso destino: acabamos por ter saudade do tirano anterior.” (p. 165)

Cada homem é uma raça

De igual modo, a representação dos europeus, em geral, e dos portugueses, em particular, é múltipla e contrastada. Já no primeiro volume da trilogia, o sargento republicano, deitando contas à “pretensão imperialista dos ingleses em provar que Portugal não tem condição para governar as suas colónias africanas”, concluía: “Não sei se odeio mais a ambição inglesa ou a vergonhosa submissão das nossas autoridades.” No presente e mais fluído volume, é o tenente Ornelas – que vem juntar a sua qualidade de narrador aos dois anteriores (Imani e Germano de Melo) – quem comenta: “Há no nosso seio correntes mais hostis entre si que as que separam anjos e demónios. Essas desavenças não são exclusivas dos lusitanos. Porque, por estas bandas, andam os europeus em guerra uns com os outros. Por razões políticas, por razões religiosas. Católicos e protestantes brigam como se não tivessem um único Deus. Há mais rivalidade entre ingleses e portugueses do que entre brancos e pretos. Se não há unidade entre os brancos também não existe uma entidade a que se possa chamar ‘os pretos’. […] Como podemos empreender uma guerra se desconhecemos a fronteira que nos separa dos inimigos?” (pp. 317-18)

E se, no primeiro volume, só as cartas de Germano de Melo, inicialmente destinadas ao conselheiro José d’Almeida, vinham intervalar a narração na primeira pessoa feita por Imani, já que o destinatário da correspondência do sargento se manteve mudo, aqui, surge a voz nova do tenente Ayres de Ornelas, criando uma verdadeira troca epistolar. Será, certamente, por esse motivo, ou seja, por razões de conformidade e verosimilhança – a acção decorre no final do século XIX e dois dos três narradores são portugueses –, que esta trilogia romanesca é (quanto aos seus dois primeiros volumes) menos permeada pela inventividade linguística que tem caracterizado o autor, dela estando praticamente ausentes os tão celebrados “miacoutismos”.

Não obstante, Imani surge como a personagem-narradora nuclear, como verdadeira protagonista do romance, e o género, aqui, não será um acaso, sendo a tematização da “condição feminina” recorrente em Mia Couto. Conta o sargento: “Ontem, aflorando este assunto [o seu caso amoroso] com Imani, ela disse algo que me parece irrefutável: que os nossos dois mundos não eram, afinal, tão diversos. E ela está certa. Em África ou na minha pequena aldeia de Portugal, as mulheres partilham as mesmas magras expectativas do que pode ser um casamento.” As vozes de Imani e de Germano de Melo são ambas de personagens de fronteira, em trânsito entre culturas, com identidades críticas. Acentuam a recusa geral de univocidade na construção e na leitura das personagens (as fictícias e as reais) e dos seus actos (aqueles documentados e os outros, só imaginados). À narrativa única da propaganda e do mito, opõe o autor a pluralidade dialógica da ficção e a sua apetência para reconstruir o real. Porque, como já dizia Imani em Mulheres de Cinza, “o pior do passado é o que está ainda por vir”. Tal programa, que Mia Couto não tem deixado de explanar e de explorar, é desde logo legível, aliás, no título do segundo livro publicado pelo autor, em 1990: Cada Homem É Uma Raça.

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