Nada do que é grego nos é estranho

Dimitris Dimitriadis não nos é estranho graças a Jorge Silva Melo e a John Romão, que há anos por cá apresentam as obras do poeta e dramaturgo grego. Haverá alguma coisa portuguesa em obras como a que encerra o Próximo Futuro? Certamente. Mas o que há de grego em A Circularidade do Quadrado?

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O teatro de Dimitriadis é, segundo Ideias, um "teatro da palavra", mais precisamente do movimento da palavra no espaço VASSILIS MAKRIS

A Europa tem origem na Grécia — e parece também ter lá o destino este Outono, com eleições às portas de Atenas, de Madrid e de Lisboa. Vem um espectáculo grego ao Próximo Futuro, palco de tantas crises nacionais, e é caso para pensar: terá alguma coisa a ver com a catástrofe dos últimos tempos? Ficaremos a conhecer melhor as actuais tragédias gregas? O que tem de caracteristicamente helénico, este A Circularidade do Quadrado (dias 14 e 15 no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa), que nos faça compreender a raiz das crises?

Para começar, tem a língua, o grego moderno, ou, melhor ainda, “a utlização da língua”, como refere José António Costa Ideias, professor da Universidade Nova de Lisboa, tradutor oficial e estudioso da obra de Dimitriadis. O teatro de Dimitriadis é, segundo Ideias, um "teatro da palavra", mais precisamente do movimento da palavra no espaço, “tendendo à dispersão, à fragmentação e, em última instância, ao silêncio”. A cena criada pelos textos de Dimitriadis é um mundo próprio, “dotado de uma linguagem outra, diferente do mundo que é a vida quotidiana”, onde estão sempre presentes “a incomunicabilidade, o desespero, o pessimismo, e, principalmente, a abjeção”. São estes traços, aliás comuns a outros autores contemporâneos gregos, que, para o tradutor, fazem a universalidade das peças de Dimitris Dimitriadis.

A peça, porém, não é o espectáculo, que foi encenado por outro Dimitris, parece que para nos baralhar com os nomes, Karantzas de apelido. E nem a peça nem o espectáculo são a Grécia. “De modo nenhum o espectáculo foi feito para espelhar o país. Fazer referência directas é algo que eu evito por sistema”, diz o encenador. “Apesar disso, foi feito na Grécia e talvez, de modo oculto, traga algo do estado actual do país.” A Circularidade do Quadrado mostra quatro núcleos de personagens, na forma de quadrados, triângulos ou pares amorosos, cuja geometria se vai combinando para dar lugar a uma paisagem única de relações desencontradas.

Uma alegoria?
A peça foi escrita em 2006, muito antes da crise, portanto, lembra o autor. Mas, acrescenta, “esta crise, com o seu lado financeiro, é também uma crise da linguagem. Os políticos têm como instrumento principal a língua, como meio de mentira, para dizerem o contrário do que pensam.” Dimitriadis prossegue: “Dir-me-ão que todos os homens políticos mentem, mas no caso desta esquerda inominável, o reino da mentira, na sua forma mais vergonhosa, conduziu a um desastre nacional sem precedentes.” As personagens de A Circularidade do Quadrado vão enredando cada um dos seus parceiros numa teia de palavras tecida pela cupidez e pelo egoísmo, que manipula e anula o outro, ao ponto de suprimir as suas falas. “O tema da minha peça tem a sua fonte original numa situação de interacção humana similar, que é, sem dúvida, também política e social.” Para Dimitriadis, os gregos têm necessidade, tal como as personagens da peça, de uma renovação da dignidade da língua, para poder chegar a dizer as palavras que dizem o que significam e não o seu contrário. “Às vezes, o teatro, a forma dramatúrgica, tem a aptidão de captar uma realidade que não pertence ainda ao presente da sua escrita, porque a sua função verdadeira é a escavação mais profunda das coisas humanas”, remata o autor.

O espectáculo está dividido em quatro partes, explica Karantzas: Acordo, Representação, Levantamento e Reconciliação. Esta é a dramaturgia da peça que, para o encenador, segue uma lógica similar à da vida. As personagens primeiro descobrem os seus padrões de comportamento, depois revêem esse lastro de atitudes, que aos poucos se revela insuportável, uma armadilha na qual se aprisionaram a si mesmos, quer como actores, quer como personagens. É a noção desta prisão que os faz reagir, enxugando falas e diálogos e acabando por fundir as quatro histórias numa só. Do cansaço, as personagens passam à reconciliação, à “aceitação de si mesmos, à aceitação do outro, ainda que o outro seja o próprio opressor deles.”

O que interessa ao encenador, neste espectáculo, é o modo como cada indivíduo, com o seu lastro pessoal, dialoga com os elementos da dita personagem. “Isso é que é interpretação, e não ilustrar uma personagem estática e pronta.” E é também isso que, acredita Karantzas, mantém o palco vivo: “A revelação da personalidade de cada actor, com o que ele tem de fazer no momento exacto da aCtuação. Não é um esforço de distanciamento, mas de duplo engajamento.”

A peça é apresentada com todas as luzes da sala acesas, arena e plateia iluminadas, e apenas algumas cadeiras e sofás espalhados pelo palco, quase uma cena com cara de ensaio. Copos e garrafas, inclusive, são de plástico. Os diálogos são feitos à frente de todos os outros actores, como se as personagens estivessem ausentes de cena, mas, sendo a terceira parte de quem se fala, pudessem testemunhar a interacção. De modo similar, actores e personagens olham para a plateia quando calha, parecendo procurar confirmação para o seu ponto de vista junto de quem assiste às trocas de palavras. Uma cena aberta, que reforça o lado retórico e público da língua da intimidade. Conta Karantzas que o facto de todos estarem de acordo, em frente a uma assistência, em levar a cabo as suas histórias feitas de dor, traição, assassinato e suicídio, compromete-os, actores-personagens, a prosseguirem essas histórias até ao fim da actuação, por muito duro que seja. “Na primeira parte, os actores são muito cuidadosos com o que fazem, ainda que gradualmente o jogo se torne cada vez mais perigoso e eles comecem a ter uma curiosidade obscura, paradoxal — parte da natureza humana, também.” A presença de todos em palco ao mesmo tempo afecta o desenvolvimento das histórias. “Isso tem a ver com um processo subconsciente, no qual, ao mesmo tempo que participa na vida, uma pessoa pode observar desapaixonadamente, tentar compreender o que se passa ou até, como um vampiro, tentar sugar a essência do que acontece do portador.”

A palavra a quem a trabalha
A Circularidade do Quadrado pode ser visto também como um espectáculo musical, com variações a partir de um tema, andamentos com diferentes tempos e uma espécie de apoteose em que a fusão dos vários elementos concorre para mudar a percepção do que ao início nos parecia familiar, e agora é visto como estranho — e vice-versa.

As quatro histórias são repetidas quatro vezes, para que, a cada vez, as personagens “avancem um passo em direção à concisão a mais absoluta.”, diz Dimitris Dimitriadis, “Para que as história contem, na sua trivialidade, propositada, o desejo de romper os limites, de ir mais e mais ao fundo dos problemas de cada um, dos impasses de cada um, da miséria de cada um.” Cólera, ódio, desprezo — o mecanismo da repetição gera esses sentimentos e emoções, mas também causa uma necessidade enorme de repreenderem o mais possível, de dizer a verdade, de se exporem e, finalmente, de serem solidários entre si, de se amarem como desejarem. “A passagem da polidez social à opressão do outro é na verdade uma passagem da hipocrisia à sinceridade, da aceitação passiva dos estereótipos e das mentiras à tomada de consciência de uma realidade mais ou menos secreta, íntima, que diminui o ser humano e o torna incapaz de viver de uma maneira, não diria mais humana, porque o humano é, para mim, aterrorizador, mas mais perto da sua verdade profunda.”

O espectáculo e a peça não são sobre traições, embora os abandonos, as rejeições e o adultério façam parte dos enredos das quatro histórias contadas — melhor seria dizer mostradas, talvez — ao vivo. A ilusão de que o amor é fácil torna o amor ainda mais difícil, diz e demonstra nesta peça o autor, cunhando uma frase para o futuro. Nada do que é humano me é estranho, disse por sua vez o romano Terêncio, num tempo em que a Grécia não era um país tão estrangeiro assim. Seremos, também, gregos? Questão de ver se, no teatro, nos identificamos ou os estranhamos.

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