Nação valente e mortal

Com Laurence Olivier, O Animador foi uma das histórias mais felizes de sempre do teatro inglês. Agora, com João Pedro Vaz no papel que foi dele e Portugal no papel que foi de Inglaterra, o TEP nacionaliza essa história que tinha tudo para ser estrangeira, a começar pela Crise do Suez.

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Havia um império, agora há só esta necessidade de beber para o esquecer.

Ficam ambos lá atrás, a cores mas não muito, como numa sitcom com penteados de época, cadeiras vintage e risos enlatados: o passado tem essa vantagem de se transformar numa zona de conforto sempre que o maquilham e enfiam na televisão para contar como foi, mas não é bem isso que acontece aqui, apesar de até certo ponto tudo se passar dentro de um ecrã panorâmico cinzento. Impossível encontrar posição na cadeira, mesmo sendo ela vintage, quando há mortos em combate e as piadas com que o animador Archie Rice enfrenta o seu cada vez mais inexistente público de music-hall antes de regressar a casa para entrar noutro espectáculo, o da realidade, se tornaram tão lamentáveis como ele. Recapitulemos, para nos situarmos no país estrangeiro (risos enlatados) que o Teatro Experimental do Porto (TEP) faz agora chegar ao Teatro Nacional D. Maria II (até dia 20): havia um império, agora há só esta necessidade de beber para o esquecer e uma crise do Suez atravessada na garganta da anteriormente valente e imortal Inglaterra. Precisamente à hora em que a família, finalmente recomposta do racionamento e da chuva de bombas e de casualties da Segunda Guerra Mundial, se senta para jantar e a única coisa que ainda parece poder uni-la além do gin (muito gin, demasiado gin, ganhando terreno em cima da mesa à mesma velocidade com que a nação perde colónias, zonas de influência e o seu orgulho de velha senhora) é o ódio aos árabes.

Já havia disso na Inglaterra dos anos 50. Tal como já havia uma terceira via, neste caso não exactamente entre a esquerda e a direita mas entre a pátria ou a morte, no tal país estrangeiro (mais risos enlatados) que o TEP enfia numa televisão em O Animador não para contar como foi mas para olhar para trás com raiva, como no título de uma outra peça do mesmo John Osborne que, tendo ficado lá atrás, faz parte do esplendor da companhia (Look Back in Anger, que em português se chamou O Tempo e a Ira, chegou ao país em 1967 por iniciativa do TEP, numa histórica encenação de Fernando Gusmão com Luís Alberto, Isabel de Castro e Fernanda Alves). É uma terceira via que João Pedro Vaz, aliás Archie Rice (toda a lábia, e todo o currículo de adultérios, de um velho entertainer, fato azul lustroso), anuncia ao microfone em mais um número musical, apesar da indiferença de um país que desertou do music-hall e foi bater palmas para o cinema ou para outro lado qualquer: “Não tenho nada contra o Estado social/ Mas não me dou no meio da maralha/ Não me leves a mal mas esta não é a minha batalha// O que toda a gente quer é salvar a sua pele/ A mim só a minha é que me importa.”

Um país a desaparecer
Salvar a pele é tudo o que importa a Archie Rice quando o cobrador toca à campainha para o impedir de festejar mais um ano (vai em dez) sem pagar impostos. Salvar a pele é tudo o que importa a Archie Rice quando a mulher (“Phoebe, meu farrapozinho…”), tão viciada em gin como em cinema americano, é obrigada a abrir os olhos e a ver a vida real em que é humilhantemente traída. Salvar a pele é tudo o que importa a Archie Rice quando já não se aguenta sozinho como estrela de billboard e tem de usar o pai, mesmo que isso o mate, para não ser ele a morrer em palco. Salvar a pele é tudo o que importa a Archie Rice até quando o filho acaba abatido pelos árabes e a vida lhe dá uma última oportunidade para ser o chefe de família que nunca foi. É gentil da parte da mulher, do irmão, dos filhos, mas ele prefere morrer em combate – e isso merece palmas.

Archie Rice quer um palco e um microfone, não quer redenção: deve ser por isso que não tiramos os olhos dele. Há um certo heroísmo nessa relutância em aceitar que a vida vai mesmo ser “muito parecida com chupar um caramelo com papel e tudo”, e nessa fidelidade canina, raivosa, ao que um dia quis ser. É um heroísmo bonito, apesar de toda a devastação à volta – bonito até para um angry young man como John Osborne, que um ano depois de obrigar o teatro inglês a abrir os olhos e a vida real em Look Back in Anger (1956) quis fazer um funeral digno à última geração do music-hall (“O music-hall está a morrer”, escreveu no prefácio da peça, “e, com ele, uma parte significativa de Inglaterra”). Foi um funeral mais digno do que ele esperava: Laurence Olivier viu no Archie Rice de O Animador a possibilidade de se reinventar como actor numa altura em que não era só o seu casamento com Vivien Leigh que estava em crise, mas também a sua relação com o teatro (Arthur Miller tinha-o obrigado a ver Look Back in Anger, Olivier ficou profundamente abalado), e fez desse papel uma prova de vida (no processo, apaixonou-se por outra actriz do elenco, Joan Plowright, com quem ficou até ao fim da vida).

Não houve então, quando a peça teve a sua estreia no Royal Court a 10 de Abril de 1957, como não abrir a boca de espanto perante esse entertainer falido e abandonado pelos espectadores cuja decadência as luzes da ribalta expõem cada vez mais irremediavelmente (ainda há meio ano, Michael Billington, crítico do The Guardian, pôs esse tour-de-force de Olivier, que depois repetiu o papel no filme de Tony Richardson, em primeiro lugar numa lista das dez performances mais memoráveis de sempre do teatro inglês). Mas mais do que para a apoteose de um actor, O Animador fez-se, como o próprio Osborne quis fixar e esta encenação de Gonçalo Amorim para o TEP sublinha, para o funeral de um país: vê-se daqui a Inglaterra dos anos 50, sim, agitada como uma bandeira, mas também Portugal a ocupar o papel dela, como João Pedro Vaz ocupa, admiravelmente, o papel que foi de Olivier.

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Archie Rice quer um palco e um microfone, não quer redenção: deve ser por isso que não tiramos os olhos dele. Há um certo heroísmo na fidelidade canina, raivosa, ao que um dia quis ser. É um heroísmo bonito, apesar da devastação à volta Paulo Pimenta

Nisso, este espectáculo prolonga o programa de intervenção da companhia, que aqui se manifesta, retomando temas de peças anteriores (a destruição do Estado social, a luta pela sobrevivência, a emigração e o papel do artista diante disso tudo), nas inflexões que Rui Pina Coelho obrigou o texto a fazer para o instalar no Portugal de 2015, um país que, como o império terminal que era a Inglaterra dos anos 50, não tem como levantar hoje de novo o esplendor que em tempos a integração europeia prometeu e que já era um sucedâneo que outro que também ficou lá atrás, a cores mas não muito, como numa sitcom com penteados de época e cadeiras vintage (os risos, mesmo que enlatados, seriam muito deslocados). Certas coisas aproximam naturalmente o texto dos nossos dias (coisas como “E o que dizes daquilo do Médio Oriente? Parece que podem fazer o que quiserem de nós” ou “Acham que eu tenho um parafuso a menos só porque ainda me posso lembrar do tempo em que tudo era diferente”), outras resultam de um esforço para o aproximar (até na banda-sonora com que Paulo Furtado coze esta família ao vivo dentro de uma panela de pressão, e que incorpora o património português da canção de protesto dos anos 70). Tal como John Osborne, Gonçalo Amorim sabe o que é ver “uma parte significativa” de um país a desaparecer – falar disso é a maneira que tem de afirmar que o teatro, ao contrário do music-hall, ainda está vivo, e que os todos os que fazem continuarão a trabalhar até ao fim, mesmo quando saírem da personagem e se puserem a aspirar o chão do cenário ou a tirar um café da máquina (os actores também fazem parte da working class que com a geração de Osborne conquistou o direito a estar em cena, e que a qualquer momento pode perder o emprego e ter de fazer limpezas: primeiro statement desta encenação).

Archie é o contrário disso, o actor que nunca sai da personagem, o entertainer que continua a fazer piadas mesmo quando a família fica declaradamente em ruínas e o mundo não está mais para loosers, como ele bem sabe porque também tem um número musical sobre isso, sobre “a fina flor do entulho”, que é o lugar de onde vem: “Nós temos problemas que ninguém imaginaria/ Nós somos material bom para anedotas/ A nós nunca nada nos sai bem.” E também Gonçalo Amorim gosta dele, tanto quanto o odeia: “É muito difícil colocar-me na pele de um misógino decadente e alcoólico. Mas peça é muito caleidoscópica: o Osborne gosta de todos, até do Archie, que dá o corpo e leva tiros de todos os lados. Isso obriga o espectador a pôr-se no lugar de cada uma das personagens.” Como encenador, ele prefere “as mais borderline”, que não por acaso são também a que recusam o que parece mais conveniente: um casamento, um emprego, um país. “Se alguma coisa me dá esperança neste texto tão desesperado é a vitalidade desses nãos. São nãos animadores, significam que não vai tudo pelo cano nesta peça que caminha para o vazio, para o fim, para a morte.” Um bocado como o mundo, visto de onde ele o vê: “Como cidadão, sinto-me numa zona de impotência em relação ao que considero ser o inimigo: a oligarquia, a militarização, a guerra para que os Estados, os proclamados e os auto-proclamados, estão a convocar mais uma geração perdida. Tenho uma incapacidade brutal de ver a luz ao fundo do túnel: acho mesmo, como diz o Žižek, que a luz ao fundo do túnel é um comboio que vem na nossa direcção.”

Talvez o barulho desse comboio acorde “os moderados, os que nunca tiram as mãos debaixo do rabo”, e os ponha a bater palmas até ficarem com as mãos em ferida. É o tipo de aplauso que O Animador reivindica para que Gonçalo Amorim possa dizer no fim, como Archie: “Vocês foram um público excelente. Digam-me onde é que vão trabalhar amanhã à noite, que eu irei ver-vos.”

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