Na casa com

Quatro anos depois de se ter embrenhado nas ruas do centro histórico, dois anos depois de ter ocupado um palacete, um ano depois de ter sido muito lá do bairro social, o Teatro do Vestido radicaliza o seu historial de intimidade com o Porto num corpo-a-corpo com seis casas, e as vidas dentro delas.

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O Teatro do Vestido radicaliza em Espólios o seu já avançado historial de intimidade com o Porto, a partir da intimidade real das pessoas que aceitaram ter os lugares onde vivem invadidos, juntamente com os seus gatos, por actores, técnicos e espectadores Paulo Pimenta
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O Teatro do Vestido radicaliza em Espólios o seu já avançado historial de intimidade com o Porto, a partir da intimidade real das pessoas que aceitaram ter os lugares onde vivem invadidos, juntamente com os seus gatos, por actores, técnicos e espectadores Paulo Pimenta

Há quatro anos que o Teatro do Vestido está numa relação com o Porto. Tinha tudo para ser casual, esse primeiro encontro em que a companhia de Joana Craveiro – rapariga muito de Lisboa, muito lá do bairro de Benfica, nome aliás perigoso, para não dizer proibido – se cruzou com a cidade nalgumas das suas esquinas mais escuras, mais tóxicas, e depois dormiu com ela em pensões de uma estrela ou duas (avisando, é certo, “que tinha uma coisa com quartos”).

Não foi assim tão casual: estamos em 2016 e entretanto o Teatro do Vestido teve uma vida com o Porto, uma vida que começou na rua, como que a desbravar território desconhecido (Esta é a minha cidade e eu quero viver nela avançava a pé por uma freguesia, a Vitória, que já então dava sinais de estar à beira de ser involuntariamente tomada pela gentrificação), e que encontrou casa dois anos depois, novamente a convite do Teatro Nacional S. João (TNSJ), num palacete há muito desabitado, mandado construir por um brasileiro de torna-viagem em 1857, que a companhia ocupou divisão a divisão em Até comprava o teu amor (mas não sei em que moeda se faz esta transacção). Depois disso, ainda houve um bairro social inteiro, o do Leal, cujo glorioso passado revolucionário Joana Craveiro reconstituiu in loco, a pedido da Fundação de Serralves, em Museu SAAL – Memórias dos Moradores, iluminando-o à luz menos exaltante do futuro não tão radioso (foi bonita a festa, pá…) que veio depois.

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Paulo Pimenta
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Naturalíssimo, portanto, isto de chegados a 2016 o Teatro do Vestido ter passado a estar na posse das chaves de casa – de seis casas particulares – da Baixa do Porto. Desde hoje que as abre todas as noites (até dia 15, com partida do Teatro Carlos Alberto às 20h30), radicalizando em Espólios o seu já avançado historial de intimidade com esta cidade, a partir da intimidade real das pessoas que aceitaram ter os lugares onde vivem – as cozinhas onde já terão deixado queimar jantares, as salas de onde nunca conseguiram tirar o piano dos avós, os quartos onde fecharam para sempre uma adolescência, os sótãos para onde fugiram das más notícias, ou só para fumar um cigarro – invadidos, juntamente com os seus gatos, e as suas vidas, por actores, técnicos, e agora espectadores.

Ter ou não ter

Tem elevador, o segundo andar do belo prédio modernista de esquina onde se abre a primeira porta de Espólios – iremos pelas escadas porque enquanto subimos há uma actriz que se transforma em personagem (Trindade, a empregada que limpa o pó de 15 em 15 dias). É ela que guia quem nunca aqui entrou nem voltará a entrar pelos corredores deste apartamento-biblioteca em que se alinham todos menos 23 títulos da Colecção Vampiro, mais décadas inteiras de suplementos de jornais e inúmeras edições portuguesas (por causa das capas, que não se repetem) de certos romances de iniciação, género As Aventuras de Huckleberry Finn: “Bem-vindos ao espólio dele, bem-vindos ao interior da vida dele. Se calhar isto é um bocado forte, não?”.

É um bocado forte, sim, mas o espectáculo continua – estantes, gavetas, quartos, salas, gatos, vidas adentro, expondo, como quem tira os óculos escuros, a paixão pelos livros que a determinado momento se terá transformado em psicose, a colecção de 1.225 autocolantes da miúda que viria a ter 38 anos no ano 2000 (autocolantes de apoio às ocupações no Estoril, ou contra o nuclear – em 28 línguas diferentes! –, tudo a fazer pendant com o estojo vermelho onde desenhou com caneta de feltro a foice, o martelo e a estrela do MRPP), o hábito de esconder as coisas para ninguém as deitar ao lixo ou a caixa onde se acumulam, à falta de destino mais consequente, post-its com resoluções como “voltar a ter um animal de estimação” ou “resgatar uma casa em ruínas”.

Em cada uma destas seis casas – prédios com e sem elevador, apartamentos que já foram repúblicas, ilhas operárias reabilitadas –, um actor (Ainhoa Vidal, Miguel Bonneville, Estêvão Antunes, Rosa Quiroga, Rosinda Costa e Sara Barros Leitão) ficciona histórias a partir de um primeiro inventário exaustivo dos objectos ali encontrados e da relação que os moradores descreveram, em uma ou mais entrevistas, ter (ou não ter, ou tentar não ter) com eles.

Tocar à campainha

Sacos de boxe, bilhetinhos da escola, um livro vermelho, os álbuns de moedas do pai, o serviço de porcelana das ocasiões especiais, aquela foto do arco-íris no funeral da avó – todos estes objectos disseram o suficiente acerca de quem os guardou até hoje, às vezes de mudança em mudança, para que Joana Craveiro pudesse apoiar neles um espectáculo inteiro (os textos são dela, a partir de propostas individuais dos actores para os espaços que lhes foram destinados). Por vontade de viver numa cidade que não é a dela, e por genuína convicção de que há vida nos objectos, uma convicção teoricamente suportada no trabalho do antropólogo britânico Daniel Miller, cuja abordagem à sociedade de consumo em obras como Home Possession: Material Culture Behind Closed Doors (2001), The Comfort of Things (2008)ou Stuff (2010 rejeita a tralha negativa habitualmente associada ao materialismo.

“Quando eu estava a fazer o Até comprava o teu amor… pensei muito no que quereria tratar a seguir nesta relação com o TNSJ e com a cidade e lembrei-me de uma conferência do Daniel Miller, que eu admiro muito por desconstruir essa ideia feita da futilidade dos objectos – que para mim não é nada evidente, porque há objectos que salvam pessoas. Para fazer esta peça, copiámos o método dele: tocámos à campainha de casa das pessoas e entrámos para lhes perguntar pelas suas coisas”, explica Joana Craveiro ao Ípsilon no final de mais uma noite a entrar e a sair das vidas dos outros. “Adorando como adoro casas, intimidade, histórias de pessoas e, claro, objectos – sou uma respigadora –, propus ao S. João esta loucura de fazer um espectáculo em seis apartamentos particulares”, continua.

Foi “toda uma batalha”, no final da qual os seis actores tiveram carta branca para passar horas nestas casas que agora são protagonistas de um espectáculo – um espectáculo que às vezes decorre ao mesmo tempo que, noutras divisões, decorre a vida real dos seus habitantes anónimos. “Não tirámos as pessoas das suas casas para lá fazermos um espectáculo; fazemos um espectáculo com as pessoas lá dentro, o que torna isto tão especial quanto problemático. Estou verdadeiramente espantada com a disponibilidade das pessoas para se adaptarem à rotina de ter em casa gente a ensaiar, a montar luzes, a mexer-lhes nas coisas, a fechar-lhes os gatos – este espectáculo é necessariamente uma homenagem a elas”, insiste Joana Craveiro.

Maneira de retribuir – com a poesia de que está “sempre à procura”, é essa a moeda em que se faz esta transacção – os espólios de vidas inteiras, às vezes mesmo de épocas inteiras. O que se exibe nestas próximas noites até ao dia 15 não são, de todo, os objectos definitivos e simbólicos que se levavam para a ilha deserta, são o que ficou do naufrágio ou do saque com que – pelo menos no poema de José Tolentino Mendonça com que Espólios acaba, ao cimo de umas escadas muito antigas – se parecem todas as casas.

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